quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

TIC: Como o governo federal piorou – e muito – o sistema de Acesso à Informação

 


O novo sistema é um retrocesso em diversas funcionalidades e contém falhas técnicas inaceitáveis

O governo federal brasileiro promoveu em agosto deste ano impactante mudança na forma de interação com seus cidadãos. As alterações, que podem passar despercebidas em um primeiro momento, poderão afetar negativamente a qualidade da transparência governamental no país por anos. O Sistema Eletrônico de Informações ao Cidadão (e-SIC), plataforma até então usada para registro de pedidos de acesso à administração pública federal, foi substituído pelo canal Fala.BR. Entenda a seguir por que esta troca é um retrocesso.

O e-SIC foi desativado pela Controladoria-Geral da União (CGU) em um momento em que a ferramenta estava sendo cada vez mais usada pela sociedade brasileira. Segundo o Painel da LAI, os 431 mil solicitantes estão prestes a atingir a marca de 1 milhão de pedidos de acesso à informação protocolados. Antes de tudo, portanto, é fundamental dizer que tal mudança aconteceu sem que fosse realizada consulta aos cidadãos e aos milhares de usuários do sistema e nem mesmo uma explicação sobre a razão das mudanças foi apresentada.

A migração, realizada em meio à pandemia, também não foi discutida – muito menos aprovada – pelo Conselho de Transparência Pública e Combate à Corrupção (CTPCC), órgão consultivo integrante da estrutura básica da CGU. Tampouco consta alguma menção ao novo sistema no Plano de Trabalho 2019-2021, aprovado pelo conselho e registrado no Diário Oficial em 4 de março deste ano.

A CGU afirmou, em nota, que “não houve consulta aos cidadãos ou usuários da ferramenta e nem outro tipo de consulta, como ao CTPCC, uma vez que não se tratou de implementação de uma política pública ou estratégia, mas sim de uma iniciativa operacional em busca de simplificar a interação do cidadão com os órgãos públicos, exatamente por reunir, em uma mesma plataforma, os dois serviços antes pulverizados em sistemas distintos. Apesar da mudança no Sistema, não houve nenhuma mudança nas regras e normas relativas à Lei de Acesso à Informação (LAI).”.

O aviso prévio dado pela CGU também foi insuficiente, para não dizer inexistente (publicaram apenas uma nota no site do órgão). Muitos que tentaram acessar o site na semana de implementação simplesmente encontraram um link quebrado sem qualquer explicação nem direcionamento para o novo portal.

Fosse realmente uma mera questão operacional e o banco de dados seguisse funcionando plenamente, não haveria qualquer problema. Mas a migração feita pela CGU esbarrou na realidade de que o novo sistema está repleto de problemas técnicos e se torna quase impossível consultar as respostas dadas pelo governo a pedidos de LAI.

Com muitos problemas técnicos, o Fala.BR passou a ser o novo canal oficial do governo federal para centralizar demandas diversas de cidadãos, sendo a principal delas o acesso à informação pública previsto na Lei de Acesso à Informação (LAI).

A ideia por trás da mudança é nobre: centralizar em uma única interface diferentes formas de interação com órgãos públicos (Acesso à Informação, Sugestões, Reclamações, Solicitações, Elogios, Denúncias e Pedidos de “Desburocratização”). A CGU vendeu a ideia de que a mudança iria universalizar a ferramenta, já que o Fala.Br poderia ser adotado gratuitamente por qualquer município e estados – que hoje têm canais próprios de acesso à informação, muitas delas ruins ou que carecem de recursos técnicos e financeiros para criar um sistema próprio de interação com os cidadãos.

A prática, entretanto, arruinou a boa ideia. A execução parece ter sido caótica. Do dia para a noite, diversos links para acesso ao conteúdo de pedidos respondidos nos últimos anos pararam de funcionar ou direcionam para outros pedidos. Com eles, por exemplo, perdeu-se também boa parte dos dados divulgados nas edições anteriores da newsletter Don’t LAI to Me, que já foram usados milhares de vezes para o controle social por jornalistas, ativistas, advogados e pesquisadores.

Para além dos bugs, a própria ideia central do Fala.Br como o “novo e-SIC nacional” ainda não vingou, já que quase nenhum município ou Estado adotou o sistema. Até o dia 26 de novembro de 2020, o sistema só havia incorporado um estado (RR), a capital do Acre e os municípios de Aquiraz (CE), Caparaó (MG), Carmo da Cachoeira (MG), Nova Andradina (MS), Alcantil (PB), Sobrado (PB) e Vertente do Lério (PE), embora o processo de inclusão tenha sido aberto pela CGU em junho. Mesmo para estes municípios as opções são escassas e não há divisão por órgão público.

Outro grupo que seria incluído no Fala.Br é o de “serviços sociais autônomos”, abrindo espaço para as entidades do Sistema S, por exemplo. Até agora, no entanto, só um órgão está disponível: a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil). Na prática, isso significa dizer que o controle social sobre as atividades desempenhadas pelas entidades que compõem o Sistema S Brasil afora, como Sesi, Sesc e Senai, seguirá prejudicado.

Falhas inaceitáveis

Se por um lado as novidades não chegaram como prometido, por outro, o que já estava consolidado agora virou um problema. Os cidadãos, que por fim estavam se adaptando ao sistema antigo, agora têm de redescobrir como usar uma nova ferramenta que dificulta ou impossibilita processos.

A plataforma para Consulta de Pedidos e Respostas (também conhecida como Consulta SIC) é o principal dos problemas, em nossa visão, já que simplesmente parou de funcionar. Este repositório continha todos os pedidos de informação já feitos ao governo federal desde 2016, com respostas, recursos e seus anexos. A plataforma tinha sido um dos maiores acertos do governo federal e da CGU em termos de transparência ativa, já que permitia que perguntas e respostas já dadas pelo governo ficassem públicas e acessíveis a qualquer pessoa, facilitando e organizando o acesso à informação e reduzindo o trabalho duplicado dos servidores, já que poderiam responder pedidos iguais indicando o link de uma resposta anterior, por exemplo.

Desde a migração para o Fala.Br, o Consulta SIC ficou praticamente inoperante, já que os filtros não funcionam mais e, de forma inexplicável, links que levavam a uma resposta agora levam a outra, desorganizando todo o sistema até então bem sucedido em abrir dados à população e armazenar o trabalho já feito pelos órgãos públicos para reunir todas as informações solicitadas.

Para piorar, o contrato da CGU com a Microsoft para garantir suporte técnico especializado ao servidores expirou em julho desde ano. Vigente desde 2015, o contrato de R$ 425 mil anuais simplesmente não foi renovado. Em nota, a assessoria da CGU atribuiu os problemas do Consulta SIC ao vencimento do contrato, sem indicar o motivo nem previsão para nova contratação.

Problemas técnicos

De forma geral, avaliamos que a experiência dos usuários ficou prejudicada por várias questões:

  • A ferramenta de busca por palavras-chave dentro do login do usuário, que facilitava a busca por um pedido mais antigo registrado, por exemplo, deixou de existir sem nenhuma justificativa. Agora só é possível usar filtros mais genéricos, como de data ou status da solicitação;
  • Há necessidade de clicar em mais botões para encontrar uma resposta a um pedido de informação. A resposta fica “escondida” em um botão “+” ao lado de um campo e muitos já nos procuraram por causa da confusão;
  • Antes, as respostas recebidas pelo sistema eram direcionadas ao e-mail com um hiperlink que, ao ser clicado, levava automaticamente para a resposta, mesmo com o usuário deslogado do sistema. Agora, caso o usuário não esteja logado, o sistema redireciona para a página inicial e é necessário logar, voltar ao link do e-mail e clicar nele novamente; caso contrário o site direciona para a homepage do Fala.BR, e não para a resposta do pedido clicado;
  • O e-SIC permitia ao usuário realizar o download completo do pedido de informação, seus recursos, respostas e eventuais anexos com dados. Essa funcionalidade não existe no Fala.Br. Também não é mais possível fazer o download da lista de protocolos realizados pelo usuário em determinado período;
  • Bugs constantes, como pedidos que não permitem interposição de recursos mesmo dentro do prazo, sistema que desloga sozinho em poucos minutos, falhas inexplicáveis de tempos em tempos que impedem o envio de solicitações, dentre outros casos pontuais.

Identificamos ainda questões técnicas, como a URL com informações a respeito do “chatbot”, que direciona para uma página não existente. Também não foi localizado site contendo, sobre o novo sistema: 

  • a) número da versão; 
  • b) data de implementação  e 
  • c) modificações realizadas. 

Essa prática era adotada no e-SIC, tornando transparente ao usuário as modificações ocorridas, inacessibilidade que representa mais um retrocesso do Fala.Br frente à política anterior.

Conclusões

Conclui-se que, após dois meses, o Fala.Br ainda não apresentou nenhum benefício concreto para os cidadãos, retrocedeu em pontos centrais para acesso e uso efetivo do direito de acesso à informação e apresenta péssima condição técnica. Em meio às dificuldades causadas pela pandemia, a CGU impôs um sistema mal construído e com problemas sérios, sem diálogo, sem preparação e sem justificativa.

A princípio, nossa postura institucional foi a de observar, testar o sistema e conceder à CGU tempo para “aparar arestas” na migração, corrigindo os diversos problemas identificados. Mas, três meses após informar detalhadamente todos os problemas a serem corrigidos em uma Solicitação de Providências à CGU, não identificamos nenhuma melhora significativa.

Apesar do péssimo começo, a CGU ainda pode reverter a situação e instituir um processo ordenado para uma migração qualificada, garantindo que o novo sistema não cause disrupções no processo de assimilação das ferramentas de transparência pela sociedade brasileira e que sejam agregados benefícios reais aos cidadãos.

É dever da CGU e do governo federal assegurar que não haja retrocessos no direito à informação e garantir que promessas feitas sejam, de fato, cumpridas. Para isso, é fundamental que haja diálogo com os milhões de usuários da plataforma, seja do lado dos cidadãos ou do lado dos servidores públicos.

Fonte: Jota (02/12/2020)

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