quarta-feira, 12 de junho de 2019

Planos de saúde individuais subiram 382% desde 2000, acima da inflação; Ipea culpa falhas na regulação


Discrepância seria ainda maior se índice captasse preços dos contratos coletivos do setor

Os planos de saúde individuais foram reajustados em 382%, entre 2000 e 2018. O percentual é mais do que o dobro da inflação do setor de saúde, 180%, excluindo os planos da taxa. Estudo feito pelo Ipea também mostra que os aumentos registrados nos planos foram muito superiores à inflação geral da economia medida pelo IPCA (208%) no período.
A diferença entre as taxas seria ainda maior se o IPCA captasse os preços dos planos coletivos, que correspondem a cerca de 80% do mercado, e, ao contrário dos individuais, não têm reajuste anual regulado.

A conclusão do estudo do Ipea é de que há falhas na regulação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). A avaliação é que a política da agência não foi capaz de proporcionar redução de custos, reduzir a assimetria de informação entre usuários e operadoras, nem estimular a eficiência do setor.

— A grande discrepância entre a inflação dos planos de saúde, a taxa do setor e a inflação geral mostra que há uma anomália. Não é uma jabuticaba que a taxa setorial seja mais alta do que a inflação geral, mas o fato de ser uma discrepância grande num setor regulado. Isso mostra uma falha regulatória. Ela pode ser explicada pelo fato de o benchmark (avaliação) para o cálculo do reajuste dos planos individuais no período ser baseado em preços livres dos contratos coletivos, e pela captura da ANS, como aponta estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) — ressalta o economista Carlos Ocké-Reis, um dos autores do estudo, pós-doutorado em Yale School of Management e que com passagem pela ANS entre 2007 e 2010.

Segundo Ana Carolina Navarrete, pesquisadora em saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), o levantamento mostra que a inflação do setor (IPCA Saúde), que acumulou 220,83%,  é puxada para cima pelos reajustes dos planos de saúde:

— O que torna esse estudo relevante é que ele mostra como o argumento das operadoras não faz sentido. As empresas dizem que os reajustes são elevados, entre outros motivos, porque a inflação médica é alta. Mas o estudo mostra que a inflação de serviços de saúde, quando retiramos os planos e o item cuidados pessoais, fica menor do que a inflação geral. Ou seja, não é a inflação médica que faz os reajustes dos planos altos, mas os reajustes dos planos que jogam a inflação de saúde pra cima.

Setor diz que custo subiu 17,3% em 2018
Este mês deve ser divulgado o primeiro reajuste de planos individuais calculados por uma  nova metologia aprovada pela ANS no ano passado. A fórmula tambpem será alvo de um nova análise do Ipea. O estudo atual, no entanto, já levanta dúvidas sobre a capacidade do novo cálculo de reduzir distorções e a judicialização do setor, por ter deixado de fora os planos coletivos, cujo índice é determinado a partir da negociação entre a pessoa jurídica contratante e a operadora de plano de saúde.

No ano passado, o Tribunal de Contas da União União (TCU) divulgou um levantamento em que questionava o cálculo de reajuste feito pela ANS e apontou problemas relacionados à falta de transparência e consistência da metodologia. Após esse parecer, o Idec entrou com ação civil pública, pedindo que a Justiça determinasse o IPCA Saúde como índice de reajuste dos planos individuais, o que significaria na época um aumento de 5,72%. O índice chegou a ser concedido, de forma liminar, mas acabou derrubado, e a ANS determinou um aumento de 10%.

— O Idec indicou a inflação setorial de saúde como índice provisório ao teto da ANS até a formulação de uma nova metodologia.  A justificativa para isso era escolher um índice transparente, que fosse de fácil compreensão para todos os brasileiros e que refletisse variações  de preço no setor de saúde — destaca Ana Carolina.

Para a médica Lígia Bahia, professora da UFRJ, apesar dos percentuais muito acima da inflação, o reajuste dos planos individuais é "o menor de todos os problemas":

—  Os individuais ainda têm um teto para o reajuste. No caso dos planos coletivos, os aumentos são abusivos, chegam a 70%. E nesses contratos ainda estão o que consideramos falsos coletivos, afinal  um plano para pessoa jurídica, um MEI, deveria ser contrato individual. A ANS precisa ver o setor de forma sistêmica e criar tetos também para  o reajuste dos coletivos.

Ligia  pondera ainda que o percentual de reajuste não deveria ser uma surpresa para o consumidor todo ano:

— Os dados precisavam ser mais transparentes, de forma que a gente pudesse acompanhar e a evolução dos custos e ter alguma previsibilidade.

Para José Cechin, superintendente executivo do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), o controle de preços está longe de ser uma boa solução:

— Na média, aqueles planos que necessitariam reajuste abaixo do estipulado, vão aumentar as mensalidades acima do que o necessário. Os planos que tiveram uma evolução de custo maior, não serão ressarcidos pelas suas despesas. Nesse cenário, qual o sentido faz manter uma carteira que não paga sequer os seus custos.

Levantamento feito pelo IESS, com um conjunto de planos individuais, que somam 875,5 mil beneficiários, aponta uma Variação de Custos Médico-Hospitalares (VCMH) de 17,3%, entre dezembro de 2017 e dezembro de 2018. O índice é superior ao do ano passado, quando o IESS apurou uma variação de 16,5%.

— Se operadoras e prestadores de serviços não tivessem feitos esforços para mudança de modelo de pagamento e assistenciais esa taxa poderia ser ainda maior. O crescimento ainda é muito alto, cerca de quatro vezes a inflação do período.  Reduzir essa diferença entre os custos da saúde e a inflação geral é um objetivo, pois do jeito que está caminhamos para reduzir cada dia mais o número de brasileiros que têm condições de contratar um plano de saúde. Se isso vai acontecer, não sabemos. Há uma série de variáveis que não estão nas mãos da operadora — diz Cechin, que defende o VCMH como um balizador para o índice de reajuste dos planos individuais.

Para Ocké, no entanto, o VCMH, não deve servir de parâmetros por representar uma tentativa de repasse de custos do setor, transferindo incluindo a ineficiência das operadoras.

Setor recebeu R$ 14 bi de subsídios
Outro dado questionado pela pesquisa é o patrocínio indireto ao setor com subsídios no valor de R$ 14,1 bilhões, em 2016, originados do abatimento do imposto a pagar no Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) e Pessoa Jurídica (IRPJ). Para Ocké, num cenário de restrição fiscal, as autoridades governamentais deveriam estar atentas para esse fato, principalmente diante das queixas dos consumidores sobre os reajustes abusivos praticados pelos planos.

Marcos Novais, economista-chefe da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), diz que um contraponto interessante aos subsídios apontados por Ocké, é a carga tributária sobre planos de saúde, no mesmo período, de R$ 42,5 bilhões no mesmo período. Novais pondera que o preço é só um resultado, que o importante é se debruçar sobre o que levou a esses reajustes, como aumento de frequência, introdução de tecnologia, envelhecimento populacional.

O economista admite que as operadoras brasileiras estão atrasadas, no que diz respeito a mudanças de modelos de pagamentos de prestadores, e isso pode se refletir em redução de custos, mas ele diz que essa mudança precisará do apoio da sociedade.

— Dependemos de que os hospitais topem essa mudança. Não à toa, a maioria das operadoras associadas à Abramge tem apostado em rede própria. Mas não é possível ter uma rede 100% verticalizada. Nos Estados Unidos, com o Obama Care, o Estado, como contratante de planos para a população, negociava as regras com os prestadores de serviços. Aqui vamos precisar que a população entenda e nos apoie, quando houver, por exemplo, um descredenciamento pelo fato de o hospital se negar a mudar o modelo. É preciso mudar o entendimento do que é qualidade em saúde — diz Novais.

Para ANS, comparações são tecnicamente inadequadas
Procurada, a  Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) disse considerar tecnicamente inadequadas as comparações feitas entre o índice de reajuste dos planos de saúde individuais e índices de preços ao consumidor, sejam eles gerais, como o IPCA, ou específicos.

A agência pondera que  os preços dos serviços de saúde tendem a crescer acima da média dos demais preços da economia também em outros países. E acrescenta que as "despesas com assistência à saúde variam tanto em razão de alterações no preço dos procedimentos (consultas, exames e internações) como em razão de alterações na quantidade e tipos de serviços utilizados." Cita que, entre 2014 e 2017, por exemplo, foi registrado  aumento de 5% no número de internações, o que, afirma, teria trazido "um impacto para os custos setoriais não mensurável por índices de preços."

A agência chama a atenção ainda para o fato de a composição da cesta de serviços do IPCA medir a “inflação do consumidor”, e não a cesta de serviços das operadoras de planos de saúde. E ressalta que, "mesmo após o expurgo do item Plano de Saúde e do subgrupo Cuidados Pessoais, a composição do IPCA contém itens que não fazem parte da estrutura de custos de uma operadora, limitando a comparação".

E lembra que  os próprios autores do estudo sugerem a criação de um índice de preços de produção de serviços de saúde como forma mais adequada de medir a variação dos preços na prestação deste tipo de serviço. 
  
A ANS afirma ainda que a  nova metodologia de cálculo, vigente desde dezembro de 2018,  foi amplamente discutida com a sociedade,  e que o índice anual de reajuste dos planos individuais já contempla aspectos abordados pelos autores do estudo do Ipea. Entre eles, destaca, a variação das despesas assistenciais das operadoras; um fator de eficiência;  a dedução dos reajustes médios aplicados por faixa etária; e a ponderação das despesas não assistenciais por um índice específico.

A nova fórmula, destacam, " contém um fator de incentivo à gestão das despesas assistenciais", e  combina um Índice de Valor das Despesas Assistenciais (IVDA) com o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), retirando-se deste último o subitem Plano de Saúde.

Entre 2001 e 2018, na ANS, a metodologia de cálculo do reajuste dos planos individuais/familiares usava como parâmetro de comparação o reajuste médio aplicado aos contratos coletivos com mais de 30 vínculos, em regra não sujeitos à carência.

Consulta a Federação Nacional da Saúde Suplementar (FenaSaúde), que reúne as maiores operadoras do setor, não quis comentar a pesquisa.

Fonte: O Globo (11/06/2019)

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