terça-feira, 24 de março de 2020

Idosos sofrem com a necessidade de ficarem longe das ruas e dos netos



Na medida em que o vírus se alastra pelo Brasil, mais famílias veem a relação de netos e avós ficar estremecida

No bolo de aniversário de Dona Carmen Portugal não foi possível colocar todas as velinhas a que ela tinha direito, mas a senhora, que completou 100 anos de idade na última quarta-feira, sentiu falta foi de outra coisa: sua família, que costuma comemorar a longevidade da matriarca com festa e carinho, não pôde estar presente desta vez. A culpa é do coronavírus, que já provocou 34 mortes no Brasil e tem se mostrado especialmente cruel com os idosos e pessoas com problemas crônicos de saúde. Por conta do perigo, parentes de quem está nos grupos de risco têm se distanciado, levando quem já enfrenta a vulnerabilidade causada pela idade ou pela doença ao isolamento social justamente em um período de tantas incertezas.

Dona Carmem comemorou um século de vida com os funcionários de uma casa de repouso em Belo Horizonte, em Minas Gerais. Neta da idosa, a oftalmologista Renata Brando, que mora no Rio de Janeiro, diz que a família escolheu não expô-la ao risco, mas lamentou a distância.

— A administradora da casa e os cuidadores fizeram um bolinho pra ela. Infelizmente, ela não está tão consciente mais e acho que não entende sobre o vírus. Mas, por incrível que pareça, agradeceu os parabéns. Nós é que sofremos mais, a gente fica muito triste por não poder estar junto — disse Renata.

Na medida em que o vírus se alastra pelo Brasil, mais famílias veem a relação de netos e avós ficar estremecida. Tem sido difícil convencer os mais velhos a se afastar. A atriz Pamella Machado, de 26 anos, afirma ter precisado insistir com a avó, Ercília de Arruda e Silva, de que não poderia mais vê-la até o surto do coronavírus passar. Pamella viajava semanalmente cerca de 150 quilômetros entre São Paulo e Mogi Mirim, no interior paulista, para visitar a avó.

— Desde o início da pandemia, nos falamos todos os dias por celular. Não tenho coragem de ir lá vê-la. Ela já é operada do coração, tem diabetes. Quase perdi minha vó algumas vezes. Não quero colocar a vida dela em risco — diz a neta.

Pamella conta que conversa com a avó por telefone ou videoconferência. O assunto é quase sempre o mesmo: acalmar a idosa. Dona Ercília, diz ela, apesar de ouvir no noticiário que o risco é muito maior para idosos, fica preocupada com a neta:

— Coisa de vó, né? Anteontem a gente teve uma conversa tensa. Ela falou ‘você não vem para cá? É muito melhor vir para Mogi do que ficar aí em São Paulo’. E eu respondi que não podia colocar a vida dela em risco.

O casal Helena e Abrahão Weber, de 82 e 92 anos, também experimenta o isolamento social para se prevenir do vírus. Eles cancelaram as festividades do Pessach, a Páscoa judaica, quando reúnem família e amigos em casa, em São Paulo.

— O Pessach era muito importante, então para eles foi bem difícil. É uma época em que toda a família se encontra na casa deles desde que eu nasci. Eles faziam todas as comidas, decoravam a casa, faziam todas as rezas — diz Victoria Weber, neta do casal e que está há duas semanas sem vê-los.

Ela diz que tinha o hábito de levar Helena e Abrahão para almoçar em restaurantes nos fins de semana, programa que precisou ser suspenso.

— Agora eles não podem sair. Ver os filhos e netos faz parte da rotina. E, de repente, eles perderam tudo isso — lamenta.

Apesar do momento difícil, os familiares entendem que é uma medida necessária para o bem de todos. Segundo Paolo Zanotto, virologista do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, o distanciamento social é um dos fatores que desaceleram a epidemia.

Interfone para vizinho
O contato presencial acabou, mas, em muitos casos, o virtual aumentou. A chamada de vídeo foi a alternativa encontrada por Nathalia Gastim para conversar com o avô José, de 90 anos. Ela mora no Rio e ele, em Nova Friburgo. Antes das recomendações de quarentena, costumavam se falar duas vezes por semana. Agora, conversam diariamente.

— Ele é extremamente ativo e não está acostumado a ficar em casa. Estou mantendo esse contato mais frequente pela saúde mental dele. Ao final da ligação, sempre falo mais de uma vez que o amo. Acho que isso é um estímulo — relata.

Demonstrações de afeto como as de Nathalia se farão ainda mais essenciais daqui para frente, segundo o psicólogo Alexandre Bez.

— Nesse momento, é importante frisar que são medidas necessárias e passageiras — diz ele, lembrando que a situação pode despertar quadros de depressão e ansiedade. — E uma pessoa idosa, quando acometida por uma depressão, pode ir a óbito.

O alerta sobre as pessoas mais velhas que vivem sozinhas também foi aceso no Centro Internacional da Longevidade no Brasil, que prepara a campanha “Vizinho solidário do idoso solitário”. A ação prevê a divulgação de dicas e recomendações pela internet.

—Todo mundo tem aquele vizinho idoso que mora só ou é pouco procurado pelos seus familiares — diz o presidente da entidade, o gerontólogo Alexandre Kalache. — E essa pessoa precisa sentir que tem alguém que se preocupa com ela. Em Copacabana, por exemplo, estamos fazendo campanha para que os porteiros interfonem para os idosos mais de uma vez por dia para saber se estão bem.

Fonte: O Globo (24/03/2020)

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