As histórias de americanos que se refugiaram em lugares como Bahamas e Havaí e não conseguem voltar para casa
Na véspera de completar 36 anos, a solista do Balé da Cidade de Nova York, Megan LeCrone, recebeu um telefonema urgente do amigo antigo e também solista da mesma companhia, Harrison Ball. "Se a gente não embarcar agora, não vai conseguir sair mais", ele lhe disse.
Isso foi em 20 de março, quando apenas 17 mil americanos tinham recebido resultado positivo para o exame da Covid-19, as escolas do país tinham acabado de fechar e o pessoal que fazia home office começava a se cansar da piadinha "você está de calça?" no Zoom.
LeCrone e Ball saíram correndo para o Aeroporto Internacional Kennedy, que estava vazio, e, apesar de presenciar vários cancelamentos, conseguiram embarcar no último voo para seu destino.
— Parecia que a gente tinha conseguido entrar na Berlim Ocidental — brinca Ball.
De fato, eles estavam indo para as Bahamas, onde estão até agora.
A praia de Cable Beach, onde ficam os hóspedes do complexo de hotéis Baha Mar, nas Bahamas Foto: Ana Paula Blower / O Globo
E não estamos falando só dos Matt Damons ou Jerry Seinfelds do mundo. (O primeiro está hospedado no balneário de Dalkey, na Irlanda, depois de concluída a produção de um filme inédito de Ridley Scott, rodado ali perto; o segundo, que vive com a família em um duplex no Beresford, em Central Park West, se refugiou em East Hampton.) A Secretaria de Saneamento de Nova York registrou uma queda de mais de 3% no volume de lixo nos bairros mais exclusivos do Upper East e West Side.
Mas há também aqueles que achavam que podiam dar uma escapada rápida e voltar relativamente rápido.
O que nos traz de volta a LeCrone e Ball, e a todos os outros entrevistados para este artigo. Em poucas palavras: eles sabem. Têm consciência de que seu privilégio – financeiro, físico, profissional, pessoal – lhes permitiu sair de casa, onde as infecções se multiplicavam rapidamente. Compreendem que você terá tanto dó deles como teve de David Geffen em seu superiate de US$ 590 milhões nas Granadinas, ou os recém-casados que botaram o quadro inteiro de funcionários de um hotel nas Maldivas para trabalhar.
E sabem também que não podem voltar para casa.
Uma realidade cor-de-rosa – e falsa
Waikiki Beach, em Honolulu, no Havaí Foto: Marco Garcia / The New York Times
Quando a viagem que Morgan Bernstein, diretora de iniciativas estratégicas da Faculdade de Administração Haas da Universidade da Califórnia, em Berkeley, faria com a família para esquiar no Lago Tahoe, durante o Spring Break, foi cancelada, ela se lembrou da casa fechada que a mãe tinha em Honolulu.
— Comentamos a ideia de ir para o Havaí com um casal de amigos e eles disseram: "Maravilhoso, mas vocês sabem que podem acabar presos por lá". Na época, só pensei: "Ah, tá. Bem capaz" — conta ela.
Dois meses depois, seu marido está desempregado, o carro da família precisa desesperadamente de conserto depois de uma tentativa de furto em São Francisco, onde moram, e os filhos estão felizes brincando de pega-pega com cocos flutuantes.
— No começo eu penei, me sentia meio presa no clima entre trabalho e férias; não me sentia à vontade, parecia isolada, embora esteja em uma situação em que não há motivo nenhum para dó ou sofrimento. E falava sobre isso meio que brincando nos happy hours do Zoom com os amigos, comentando que não tinha meus pijamas, meus cremes, nem aquelas coisinhas que me davam a sensação de estar em casa. Eles retrucavam: "Você está falando sério, Morgan? Reclamando de falta de hidratante hospedada no Havaí?" — lembra
Bernstein também se preocupa com a realidade cor-de-rosa falsa que criou para os filhos, um de 5 e o outro de 7:
— Eles sabem que há um vírus deixando as pessoas doentes, mas nunca os vi tão felizes. Acham que estão em férias prolongadas. Isso me faz pensar, sabe; será que estou roubando deles a experiência de compreender o que o mundo está vivendo? Será que vão ter problemas com os amigos da mesma idade porque vivenciaram este período de uma forma tão diferente?
A alguns fusos horários dali, em Los Angeles, os artesãos Alice e Sebastian Boher embarcaram em um voo, no início de março, para uma viagem de duas semanas para a Nicarágua, já calculando que, se ficassem impedidos de voltar, pelo menos estariam em um lugar dentro de seu orçamento.
O casal passou os primeiros 12 dias surfando em praias desertas, sem acesso à internet, mas, assim que Alice entrou no quarto do hotel em Granada, ligou o ar-condicionado e a TV na CNN.
— A primeira coisa que pensamos quando vimos o que tinha acontecido ao mundo foi: "Meu Deus!" Na mesma hora vinha descendo um caminhão, com uma pessoa que se dizia do governo gritando em um megafone, em espanhol: "Olá, pessoal! Lembra como os EUA e a China achavam que eram melhores que nós? Agora estão ferrados!".
Depois de diversas tentativas fracassadas de encontrar um lugar para ficar (a população se mostrava compreensivelmente desconfiada de alugar um imóvel para turistas possivelmente infectados), Alice conheceu uma mulher que cobrava US$ 500 por uma casita em uma propriedade compartilhada com um casal australiano que fugia do vírus, com direito a sacas de coco e banana-da-terra.
— Mentalmente, estou na mesma situação que os outros, e isso não tem nada a ver com minha localização física. Vejo as notícias e fico arrasada durante horas. Por outro lado, sinto muita gratidão por ter passado por uma mudança real. Vivi a vida inteira em cidades, e agora tenho a chance de ver a primeira estrela que desponta à noitinha — diz ela.
Ela deixou um amigo em Los Angeles suprindo os pedidos e encomendas, mas não tem passagem para voltar, já que a companhia com que voou não opera mais a rota.
— Todo mundo tem uma história para contar deste período. Essa é a minha sequência de eventos estranhos. Nem boa, nem ruim. É assim que é — resume.
Do outro lado do planeta, Josh Anchors, diretor de admissões globais da Escola Preparatória Léman Manhattan de Nova York, e Navia Nguyen, a quem namorava havia três meses, aterrissaram na Indonésia algumas horas antes de o país proibir visitantes. Sem as mesmas restrições sociais vigentes em Nova York, Anchors chegou a Bali e fez cinco aulas de surfe, além de explorar o centro de bem-estar da namorada, onde se esbaldou com uma limpeza de pele de microdermoabrasão, manicure, pedicure e aplicação intravenosa de vitamina C.
Mas assim que o governo fechou todas as empresas e o comércio não essencial, em 1º de abril, ele teve de obedecer à quarentena na casa dela, pondo à prova o relacionamento incipiente com condições tão radicais que não sabe como os produtores de "The bachelor" não pensaram em nada parecido.
— Você acaba conhecendo a pessoa a fundo nessas circunstâncias. É isolação? Quarentenamento? De vez em quando a gente se perguntava, "que m***a é essa que estamos fazendo?" — conta.
A princípio ele escondeu dos colegas que estava do outro lado do mundo, e colocava o alarme para despertar às duas ou três da manhã para participar das reuniões que, em Nova York, estavam sendo realizadas no meio da tarde. Mas depois se retratou.
— Agora não tem motivo para voltar para casa a não ser abraçar meus pais, mas nem isso posso fazer — lamenta Anchors. O home office só aumentou sua eficiência e, como há proporcionalmente poucos casos na ilha, ele torce para poder voltar a usar a prancha, seca já há bastante tempo, o mais rápido possível.
— Não me sinto preso, não; livre, sim — confessa.
Silenciando o mar
Depois de anos na função de organizadora de eventos em Nova York, Laura Ling conseguira economizar o bastante para passar meses viajando e pegou o último voo com destino a Medellín, na Colômbia, antes do fechamento das fronteiras.
— Foi muito estranho estar duas ou três semanas à frente em relação à Covid-19. Eu já sabia o futuro do coronavírus — comenta.
Depois de ouvir falar que os agentes da Imigração estavam pegando turistas na rua e expulsando-os do país, entrou em quarentena por conta própria, aventurando-se apenas na sacada e no terraço da cobertura.
— Meu setor está morto. Ando conversando com os colegas e todo mundo sabe que não vai dar para ganhar nada com eventos em 2020. Inclusive já comecei a pensar nas opções de carreira que tenho — Ling revela.
Toda noite ela assiste aos pronunciamentos do presidente Iván Duque à nação, nos quais sempre fala de salvar os "abuelos e abuelas":
— Não me arrependo nem um pouco de ter vindo para cá e só faço planos para os três dias seguintes. Bom, pelo menos estou aprendendo espanhol.
Nas Bahamas, Ball e LeCrone também não sabem quando vão voltar à barra, já que a temporada de primavera inteira da companhia foi cancelada. Os dois seguem uma rotina diária rígida com nado, balé, ioga e uma aula de nome meio assustador, a "Insanidade de Shaun T". Pagam US$ 10 ao pessoal nativo para entregar sacos enormes de manga e comem o que conseguirem pescar com o arpão.
E também mantêm contato com os amigos nova-iorquinos cujos exercícios em casa para manter a prática se tornaram o pesadelo dos vizinhos de baixo.
— Artista é dramático por natureza, por isso tem muito dessa coisa: "Será que um dia voltaremos a dançar? — conta Ball.
— Achamos melhor não deixar que ouçam o som do mar ao fundo. Pelo menos estamos tentando ser sensíveis — arremata LeCrone.
Fonte: O Globo (27/05/2020)
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