Imagine-se nos anos 90, num restaurante com alguém. De repente ele ou ela abre o jornal. Uma cena que seria bizarra em outros tempos é suuuper normal em 2022
Passou o pior da Covid e voltamos a sair de casa: ao cinema, nos shows, saracotear no shopping, frequentar restaurantes. Agora com novos hábitos e costumes, adquiridos ao longo do isolamento: roupas mais “confortáveis” — o leitor, horrorizado, sabe do que estou falando —, uma assustadora “sem-cerimônia” para tratar os outros e, pior, a onipresença dos telefones nas mesas.
O que já era uma pandemia antes da Covid voltou e voltou com sede de poder: agora o dono da resenha é o celular.
Lembre do século passado, leitor: imagine-se nos anos 1990, num restaurante com um amigo, um date, sua mulher ou marido. De repente ele ou ela, para o espanto de todos, abre um jornal e começa a conferir a cotação do dólar, o resultado do Mengão, a entrevista do Caetano. A não ser que fosse um daqueles casamentos de décadas, onde o dane-se está ligado há tempos, a única atitude adequada seria levantar — imediatamente — e ir embora sem olhar para trás. Ou melhor, dizendo antes umas verdades ao seu amigo, date, mulher ou marido, para dar uma situada no mal-educado insolente. Se fosse com o dedo na cara, seria perfeito.
O descaso explícito era uma ofensa grave, muito grave.
No entanto estamos em 2022 e ligar o dane-se para quem está na sua frente é a coisa mais normal do mundo, quase de bom-tom. Digo até que virou moda. Acho que foi o Umberto Eco que disse que só os policiais, os bombeiros e os adúlteros precisavam de um celular. Tolinho. Agora todo mundo tem assuntos urgentes para resolver a toda hora, seja às nove da noite no restaurante, seja às duas da manhã no bar. Tanto faz se é contador, bibliotecária, ou professor de ioga. Isso para os que se dão ao trabalho de dar uma desculpa pela desfeita. A maioria vai baixando os olhos como quem não quer nada, até encontrar a tela do celular. Aí ficam rolando a tela displicentemente, conferindo o que tá acontecendo no WhatsApp ou nas redes sociais, enquanto o amigo, date, marido ou mulher fica dialogando com o vazio, feito um cientista falando com o Bolsonaro.
Suuuper normal.
Tem mais, muitas vezes o outro também pega o seu próprio celular, ficam os dois na mesa sem olhar na cara do outro, mesmerizados com um jantar alheio nos Stories do Instagram ou o meme que está rodando pelos grupos de zap. Uma cena que seria tão melancólica quanto patética em outros tempos, porém, é suuuper normal em 2022.
Quando acontecer contigo, leitor, saiba que não adianta mudar o assunto da prosa ou inventar histórias escalafobéticas. A pessoa com o celular na mão não tá nem aí. Faça a experiência: quando tiver um cracudinho de wi-fi na sua frente fale sobre uma iminente invasão alienígena ou então diga que acabou de ver o Elvis passando de mãos dadas com a Dercy Gonçalves. Entra por um ouvido e sai pelo outro, só faltam os arbustos rolando pelo deserto. Tem mais, se você não pegar no celular em algum momento da conversa pode até causar má impressão, vão dizer que é coisa de psicopata, subversivo ou comunista. A solidão analógica está aí para ficar.
Se o leitor tiver mais do que cinco minutos de atenção de quem está na sua frente, considere isso uma declaração de amizade eterna ou amor profundo. Em 2022, é o máximo de consideração que existe.
Suspeito? Bizarro? Não, suuuper normal.
Fonte: O Globo e Leo Aversa (16/08/2022)
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