segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Idosos: Quais são as dicas dos brasileiros centenários para uma vida saudável

  


Pessoas com mais de 100 anos têm conseguido levar uma velhice feliz, ajudadas pelos avanços da ciência e por contatos sociais estimulantes

Do alto de seus ajeitados cabelos brancos, Erika Natte e Íris Bigarella têm algumas coisas em comum. Poderiam ser personagens da série “Como Viver Até os 100: Os Segredos das Zonas Azuis” (Netflix), em que o explorador Dan Buettner investiga regiões do globo com altas taxas de longevidade. Com 98 e 100 anos, respectivamente, as duas são descendentes de alemães, viveram no Paraná e em São Paulo e dedicaram-se por muitos anos às artes, seja a música ou a pintura. São centenárias que podem dizer que foram felizes - ou aprenderam a sê-lo em meio a dificuldades.  

Erika Natte chegou com 90 anos ao lar onde hoje mora, em Barueri (SP), e completou 98 em junho. Chegar aos 100 não é uma obsessão para ela, que parece viver cada dia como um presente - melhor ainda se tiver “tarde musical”. “Gosto muito de música, adoro tomar um vinho, jogar carteado e ainda faço parte do coral e participo de todas as atividades”, diz Natte à reportagem por videoconferência. Ela acrescenta que suas horas preferidas são as que envolvem e cinema. “Adoro isso aqui, minha vida é aqui.” O segredo dessa felicidade? “Tive um casamento muito feliz e pais maravilhosos que me encaminharam”, rememora e se emociona.

Como relata a psicóloga Izadora Balbinodo, que atende os 60 hóspedes do Solar Ville Garaude, em Barueri, dona Erika é dotada de notável resistência. “Durante a pandemia, todos ficaram reclusos, e ela compreendeu isso muito naturalmente; encontrou várias atividades dentro do próprio quarto”, conta. “ Percebo que um dos segredos para chegar bem aos 100 anos são as memórias afetivas positivas”, conjectura a profissional.  

Ela observa que, hoje, as pessoas têm chegado a lares de idosos por volta dos 95 anos, com maior capacidade cognitiva e motora do que no passado. “Para que a pessoa que hoje está com seus 60 ou 70 anos possa manter a perspectiva de qualidade de vida, acredito que deve cultivar boas relações, pois durante o envelhecimento sofremos muitas perdas, e manter essa conexão preenche os momentos de solidão. É claro que a alimentação regrada e um sono de qualidade são outros pilares não só para viver mais, mas também viver bem.”  

Em terras curitibanas, dona Íris completou 100 anos em agosto com ampla festa familiar. Ela conta em seu livro “Chegando feliz aos 100 anos - História de uma apaixonante jornada” (Chiado Books, 2021) um pouco de sua visão do que é ser feliz até o fim.  

O modo pelo qual vamos envelhecer depende muito das escolhas que fazemos quando jovens” Hevelyn Garcia  

Por telefone, explica que seu segredo é “ter garra constante, nunca deixar a peteca cair, por mais difíceis e complexas que sejam as dificuldades da vida”. “Nunca desisti de lutar”, afirma. A “psicanálise” (de referencial junguiano, ela faz questão de frisar) a apoiou “durante incontáveis anos, de maneira extraordinária, com orientação para o comportamento baseado no amor”.  

Em meio a seus relatos biográficos, ela lembra a “antiquíssima máxima: Mens sana in corpore sano [mente sã num corpo são]”, mas registra: “Não é tudo. O ser humano tem potencialidades muito além de suas necessidades e da simples sobrevivência orgânica.”  

Lições bem compreendidas por Rovidalvo Serra, morador de Iracemápolis (SP), que teve uma trajetória bem diferente de Natte e Bigarella. Pelos cálculos da filha Patrícia Irene Serra, ele teria 108 anos, mas não há documento que o comprove. O único registro é de quando começou a trabalhar, datado de 24 de dezembro de 1931, aos 16 anos.  

“O pai dele era baiano, veio para São Paulo e não registrou no nascimento”, conta a filha. Serra chegou a Iracemápolis em 1942, ou seja: viu a cidade crescer. Hoje não sai de casa, apesar de não ter nenhum problema de saúde. Come bem: feijão, arroz, macarronada e sopa de legumes. Não toma remédios. Quando falava com mais facilidade, contou à filha, de 36 anos, ter trabalhado na usina Iracema, junto à caldeira, e também como tratorista.  

Trabalhar, ao contrário do que muita gente pensa, não é apenas motivo de desgaste, mas parece contribuir para a longevidade. É a opinião de pessoas que querem chegar aos 100 anos, como o analista de sistemas Renato Banak Weiss. Contratado aos 57 anos, em 2021, pela indústria de válvulas multinacional Gemü, em São José dos Pinhais (PR), onde trabalha, ele acredita que, independentemente da idade, é possível aprender e ensinar.   

“Nossa mente só para quando acharmos que não podemos mais fazer nada novo ou de forma diferente”, diz Weiss. “Por isso considero fundamental, para nos mantermos ativos, aprender sempre.” Segundo ele, a idade é mais física do que mental, e trabalhar e exercitar a mente não têm prazo determinado. “Mas recomendo aos mais jovens se alimentar bem, ter hábitos saudáveis, curtir muito a família e amigos, usar seus conhecimentos para o bem - considere quem trabalha a seu lado não como concorrente, mas aquele com quem você pode contar”, afirma.

A necessidade de atividades sociais foi aprendida a duras penas por Elias Karan, 77 anos, biólogo aposentado como professor do departamento de genética da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Ele conta que caiu num “lamaçal” quando se aposentou, aos 69 anos, após trabalhar 54 no mundo acadêmico, visto que começou cedo, como técnico administrativo.  

“Veio um sentimento terrível de inutilidade”, explica, relatando as dificuldades da depressão. Ele encontrou alento em 2018, na Universidade Aberta da Maturidade (UAM), projeto de extensão da UFPR em que aprendeu temas como inclusão digital, direito e saúde do idoso, atividades corporais, meio ambiente, gerontologia, arte e cultura. O grupo se encontrava toda terça e quinta das 14h às 17h, mas ele salienta que a maioria chegava às 13h para poder conversar mais.   

“O que aprendi não foi algo grandioso, mas aquilo me ajudou a socializar. Hoje ainda nos encontramos uma vez por mês em alguma cafeteria para festejar os aniversariantes.” A rotina de sessões de fisioterapia, necessárias após vários problemas de saúde, o mantém bastante ocupado também.  

A coordenadora do projeto UAM, Ana Carolina Passos de Oliveira, professora do departamento de terapia ocupacional da UFPR, conta que o projeto é destinado a pessoas com mais de 60 anos para valorizar socialmente o idoso. “Queremos contribuir para a promoção da qualidade de vida e do desenvolvimento cultural e social dos participantes com atividades educativas diversas, especialmente palestras”, afirma.  

Ela destaca a inversão na pirâmide etária brasileira, com a tendência de, em pouco anos, haver um número maior de idosos do que de crianças. De acordo com dados recentes do IBGE, em dez anos a porcentagem de pessoas com 60 anos ou mais passou de 11,3% para 14,7% da população. Em número brutos, esses dados representam um aumento de cerca de 9 milhões de idosos no país. 

“Essa inversão é acompanhada também do aumento da expectativa de vida, o que significa que a população está vivendo mais, mas será que isso é sinônimo de viver melhor?”, indaga a terapeuta. “Talvez o aumento da expectativa de vida, por si só, esteja muito mais relacionado ao avanço das áreas médicas. No entanto, viver mais e melhor, ou seja, viver os anos da velhice com qualidade depende de uma série de fatores.”   

Entre eles, Oliveira enfatiza que “saúde” não significa apenas o bem-estar físico, mas também o bem-estar mental e social. “Pensando nesses três pilares, precisamos sobretudo adotar um estilo de vida ativo, com a prática regular de exercícios, hábitos saudáveis de alimentação e sono, para assim reduzir a velocidade do declínio dos sistemas associado ao processo natural do envelhecimento.”  

Para o bem-estar mental e social, é fundamental exercitar e desafiar a mente, sugere a terapeuta. “Uma ideia é estar incluído em ambientes sociais que promovam trocas e novas experiências. Dependemos das escolhas ao longo da vida, que vão refletir diretamente no processo de envelhecimento.”  

Mas como driblar toda a série de doenças que podem ocorrer ao longo da vida? Quais seriam os grandes inimigos da longevidade?  Essas são perguntas a que o médico norte-americano Peter Attia buscou responder no livro “Outlive - A arte e a ciência de viver mais e melhor” (Intrínseca, 2023), em que enumera os “quatro cavaleiros” da morte: doença cardíaca, câncer, doença neurodegenerativa ou diabetes tipo 2 e disfunções metabólicas relacionadas. São males que correm o risco de ser diagnosticados com atraso.

Para Attia, não faz sentido “impedir a morte, seja como for” se houver sofrimento. O segredo estaria numa mudança de paradigma, que ele chama de Medicina 3.0, baseada na prevenção de doenças crônicas.   

Por acreditar que é possível chegar a idades avançadas com saúde, o cardiologista e diretor clínico do Centro de Longevidade Fisicor Guilherme Yared afixou um cartaz na recepção de sua clínica em Curitiba, onde se lê: “Nosso corpo foi feito para viver além dos 100 anos”.  

Ele explica que a probabilidade de uma vida longa e saudável aumenta muito quando os requisitos para a longevidade são protegidos com disciplina e constância: alimentação saudável, atividade física (cardiovascular e exercício resistido), interação social, qualidade do sono, distância do tabagismo e consultas preventivas regulares para detecção precoce de patologias.  

E como se explica o aumento mundial na longevidade se também cresce o consumo de alimentos industrializados e outros hábitos nocivos à saúde? “A resposta está no avanço da medicina e da ciência, tanto no diagnóstico precoce das patologias quanto no tratamento farmacológico mais assertivo e potente”, acredita Yared.  

“O aumento no tempo de vida das pessoas está associado desde aos avanços da medicina até a melhora do saneamento básico”, concorda o médico da área esportiva Gabriel Ganme.

Ele próprio, que tem 63 anos, é um caso de resiliência, após colocar prótese nos dois quadris por artrose. “Depois da decisão final pela cirurgia, fui para o fortalecimento adequado, com exercícios próprios, e mantive práticas esportivas que me fizessem feliz.”   

Ao cultivar a musculatura forte o tempo inteiro, mesmo com as próteses, ele pratica esportes radicais como corridas de longa duração, esqui na neve, snowboarding com saltos e mergulho com tubarões. “Algumas pesquisas apontam que o envelhecimento depende 25% da genética e 75% do estilo de vida e do ambiente em que a pessoa vive”, avisa o médico.  

Ele recomenda evitar a automedicação e o sedentarismo. “Este é considerado o novo mal do século e está associado a várias doenças. O exercício físico deve ser praticado por todos, preferencialmente desde a infância e sem interrupção, pois quando se para, perde-se todo o ganho.”  

A médica endocrinologista Hevelyn Noemberg de Souza Garcia lembra que é importante desde cedo prevenir problemas. “O modo pelo qual vamos envelhecer depende muito das escolhas que fazemos quando somos mais jovens”, diz Garcia. “Vários dos problemas crônicos de saúde que aparecem em pacientes idosos, como diabetes mellitus, hipertensão arterial e dislipidemia [gordura no sangue], estão ligados ao aumento da gordura visceral localizada no abdome, por isso o controle do peso é uma importante forma de prevenção.”  

Prestes a completar 100 anos em dezembro, a missionária Marina Oliveira operou recentemente os dois olhos e quase não enxerga. Levada com 8 anos a um orfanato na região de Porto Alegre, ela atribuiu a uma sequência de “bênçãos” sua chegada ao lar de idosos onde hoje mora em Curitiba.  

Em suas memórias constam lampejos da vida como missionária e evangelista entre Rio Grande do Sul, interior do Paraná, São Paulo e até uma visita à Suécia. “A alegria de estar neste lugar é um presente de Deus”, diz. “Antes, no Paraná, não aceitavam essa cor aqui [diz, mostrando a pele negra], mas hoje isso mudou.” Ela conta que não se arrepende de nada. “Sempre meti o nariz em tudo. Hoje não sonho mais. Agora é só o céu.”

Fonte: Valor (13/10/2023)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

"Este blog não se responsabiliza pelos comentários emitidos pelos leitores, mesmo anônimos, e DESTACAMOS que os IPs de origem dos possíveis comentários OFENSIVOS ficam disponíveis nos servidores do Google/ Blogger para eventuais demandas judiciais ou policiais".