quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Meu Bolso: Influenciadores prometem ‘renda extra’ a aposentados com venda de milhas e pontos de cartão, cuidado!

  


Cursos prometem ‘salário adicional’ com negociação de milhas; especialistas veem propaganda enganosa

Se você ainda não se deparou com propagandas no Instagram e no TikTok de cursos que ensinam a fazer uma “renda extra” com o cartão de crédito, é possível que isso aconteça em breve. Nos últimos meses proliferaram nas redes sociais conteúdos de influenciadores que “ensinam” a usar o limite do cartão de crédito para gerar pontos, trocar por milhas, vendê-los e ganhar dinheiro. Eles prometem “salário adicional”, “seguro”, “vitalício” e acenam com renda extra de até R$ 5 mil por mês, mesmo para quem tem limite baixo no cartão.  

A estratégia apresentada pelos influenciadores consiste basicamente em usar o cartão de crédito - incluindo todo o limite disponível - e juntar pontos de relacionamentos, muitas vezes até comprando pacotes promocionais. Depois, esses pontos exclusivos dos cartões devem ser trocados por milhas - que são mais intercambiáveis - e, por fim, vendem-se essas milhas. Para lucrar com essa operação, é preciso arbitrar, no velho esquema de comprar na baixa e vender na alta, aproveitando promoções para a compra de pacotes de pontos e vendendo as milhas quando o preço é mais atrativo.   

Muitos “influencers” postam vídeos fazendo essas operações com lucro. O que eles não contam é que o ocorre se você não encontrar um momento bom para vender as milhas. Encerrar a operação com prejuízo? Deixar a fatura do cartão vencer e pagar os juros? Isso sem contar que, se o cliente não conseguir pagar a fatura do cartão, cairá nas taxas de juros do rotativo, que superam os 400% ao ano. Como não se trata de valores mobiliários, transações desse tipo não são fiscalizadas pela Comissão de Valores Mobiliários. Tampouco estão sob a alçada direta do Banco Central, já que não são feitas por instituições financeiras ou reguladas.

Com 242 mil seguidores, Diego Oliveira tem centenas de postagens que prometem retornos altíssimos usando o limite do cartão, com chamadas como “R$ 3.500 de lucro com 15 mil de limite no cartão de crédito”, e depoimentos de alunos que teriam conseguido lucrar até R$ 112 mil em poucos meses. Cristiano Crix, com 164 mil seguidores, diz em sua página que já treinou mais de 30 mil alunos, gerando ganhos de R$ 50 milhões. Autointitulado Rei das Milhas, ele exibe uma vida de luxo nas redes sociais e ensina “como enriquecer com o cartão de crédito”.   

Esses influencers tentam vender o conceito de retorno garantido, com risco zero, e isso não existe” — Pierre de Souza 

Thiago Catugy, da Plataforma das Milhas, tem 54,3 mil seguidores e em um vídeo chamado “renda extra com cartão é golpe” mostra alunos relatando lucros de milhares de reais. No fim, ironiza: “você também quer cair nessa golpe? Ative as notificações e me siga para mais dicas”. Com 31,8 mil seguidores, Iuri Castro promete um “segundo salário” com milhas. E Luiz Gregatti, com 123 mil seguidores, chegou a comentar o caso da 123milhas, que no fim da semana passada suspendeu a emissão de passagens promocionais para viagens de setembro a dezembro. Ele, que cunhou a expressão “saque automático vitalício”, diz que “a única forma de se livrar de golpes ou situações desagradáveis como essas é com conhecimento e não sendo ganancioso”.  

Especialistas ouvidos pelo Valor dizem que não existe crime financeiro na venda dos cursos, já que não funcionam no esquema de pirâmide, por exemplo. Ainda assim, pode haver crime de propaganda enganosa, pois as promessas de lucro fácil e garantido são abundantes. As operações são complexas e não bem explicadas para os clientes, que podem não conseguir se proteger de prejuízos.  

Pierre Oberson de Souza, professor de finanças da FGV, afirma que não é impossível ganhar dinheiro negociando milhas, mas é muito difícil fazer disso uma fonte recorrente de renda. “Podem até existir algumas oportunidades esporádicas de arbitragem, mas as informações hoje em dia são muito pulverizadas, tudo é automatizado, então essas oportunidades tendem a acabar quase que instantaneamente”, diz.   

Para Souza, os influencers usam conceitos financeiros de forma difusa, omitindo informações importantes. “Eles nunca falam da questão do dinheiro no tempo, sempre mencionam o lucro bruto, confundem o conceito de juros. Confundem quem está buscando essas informações e usam a ‘deseducação financeira’ a seu favor.”  

Ione Amorim, coordenadora do programa de serviços financeiros do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), diz que as operações são de altíssimo risco e podem configurar propaganda enganosa. “Eles usam uma linguagem muito apelativa. Se for constatada e venda de cursos de forma fraudulenta, com falsas promessas de ganho, as autoridades devem atuar.”  

O Procon-SP afirma que ainda não recebeu denúncias nesse sentido, mas alerta que o cliente deve desconfiar de promessas de lucro fácil. “Existem várias modalidades de procedimentos enganosos, sempre vestindo novas roupagens. Se essas consultorias que vendem o curso garantem algum tipo de ganho, e isso não ocorrer, o consumidor pode e deve reclamar no Procon”, diz a assessora técnica do Procon-SP Renata Reis.  

As postagens no Instagram muitas vezes levam a sites que já não existem mais ou a plataformas de pagamentos do curso - não ao site oficial da empresa. Os influenciadores que têm site geralmente não informam CNPJ, nome oficial da empresa ou mesmo telefone de contato. Há apenas campo para cadastro e, ocasionalmente, atendimento pelo WhatsApp.  

Em sites como o Reclame Aqui, há dezenas de queixas contra esse tipo de curso, a maioria de clientes relatando dificuldades para conseguir reembolso em caso de desistência, mesmo dentro do prazo legal de sete dias.  

Em resposta a questionamento do Valor, o Ministério Público Federal (MPF) afirma que não localizou nenhum procedimento envolvendo especificamente cursos sobre como usar milhas ou cartões de crédito para obter renda extra. A promotoria diz ainda que, o que identificou, foram denúncias sobre supostos cursos de vendas que, na verdade, são golpes do tipo pirâmide financeira. E que golpes são investigados pelos ministérios públicos estaduais. O Ministério Público de São Paulo, por sua vez, encaminhou o assunto para o MPF.   

Segundo Ricardo de Barros Vieira, vice-presidente da Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs), a educação financeira é uma preocupação do setor, que tem ações para ajudar os clientes. “O cartão de crédito, usado com planejamento e educação financeira, é um grande aliado. Mal usado, até remédio pode prejudicar”, afirma.  

Vieira diz que, ao se deparar com “soluções mágicas” na internet, o consumidor deve ligar para o emissor do cartão e se informar sobre as características dos programas de recompensa. “Cada um tem regras, forma de pontuação, conversão, prazo de validade diferentes. Não dá para acreditar em milagres, formas de ganhar dinheiro sem esforço.”  

Souza, da FGV, compara a estratégia de usar pontos do cartão/milhas a uma operação de “day trade” com ações na bolsa. “Esses influencers tentam vender o conceito de retorno garantido, com risco zero, e isso não existe. A pessoa entra achando que não vai ter risco e pode acabar com uma dívida enorme no cartão”, ressalta.  

A Associação Brasileira das Empresas do Mercado de Fidelização (Abemf) afirma, em nota, que os programas de fidelização, como o próprio nome revela, visam fidelizar o cliente. “Assim, é preciso ressaltar que os pontos/milhas não se enquadram na definição de ‘moeda’, pois não possuem nenhuma vinculação direta com a moeda corrente nacional e só permitem o resgate de produtos e serviços dentro da própria rede e nos seus parceiros das empresas.”  

A entidade diz ainda que, para manter a relação de ganha-ganha que os programas oferecem, há regras e políticas particulares de cada companhia. “Por isso, alerta para os riscos de práticas como o compartilhamento de dados pessoais do participante”.  

A possibilidade de venda de milhas é um tema polêmico, porque não há regulamentação específica no Brasil. Muitos emissores tentam vetar esse tipo de operação, mas parte dos especialistas diz que, como se trata de uma relação de consumo, a venda pelo cliente estaria amparada no Código de Defesa do Consumidor.   

Todos os influenciadores citados nesta reportagem foram procurados. Apenas Catugy respondeu. Segundo ele, “o mercado das milhas e de se fazer renda com o cartão é um dos mais lucrativos hoje, e isso assusta os economistas”. “Muitas pessoas dizem que pode ser arriscado esse mercado, mas eu afirmo que o arriscado é não participar desse mercado e aproveitar as inúmeras oportunidades. Se feito com a estratégia e controle correto é um mercado extremamente promissor e que pode dar excelentes retornos”, diz.  

Outro influenciador, que não quis ser identificado, afirma que os riscos são explicados aos alunos, apesar de não haver nenhuma menção no site e no material publicitário dele, e ressalta que toda atividade tem riscos.

Fonte: Valor (22/08/2023)

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