“Oi pai”, começava o zap que piscou sexta-feira passada na tela do meu celular. Era a primeira tentativa de golpe digital do dia.
Houve um tempo em que essas artimanhas criminosas eram ao vivo, exigiam do performer o domínio de artes diversas. Ao peixeiro, por exemplo, tornava-se indispensável a mão de mágico, de movimentação invisível. Ao encenar seu golpe nas feiras livres, o mágico-peixeiro inflava o peso do camarão botando dois dedos no prato da balança. Só muito depois Faustão criaria o bordão do quem sabe faz ao vivo.
Essas nostalgias parecem um bambolê azul no Museu Nacional da Vigarice, mas precisam ter o valor reconhecido no histórico da formação dos nossos anticorpos. Hoje, as vivências de golpes do tempo do olho no olho ajudam a enfrentar os vírus da maldade virtual – e, na sexta-feira, era fácil perceber que lá estava um deles na continuação do zap da minha suposta filha:
“Meu celular deu problema no visor, precisei deixar na assistência, estou com esse número provisório, qualquer coisa pode me chamar aqui.”
Era muita lábia jogada fora, um texto com toda cara de chupado de algum curso TED de falcatruas por correspondência. Além do mais, tenho o orgulho lítero-paternal de que não transmiti às minhas filhas o legado de tamanha miséria no uso da pontuação.
Demorou pouco e chegou outro zap pondo em xeque as doses de reforço contra os novos malandros. Era chancelado pelo Linkedin:
“Parabéns, você foi aprovado e selecionado em meio período/período integral. Mais de 800 dias. Aceite esta vaga” – e em seguida vinha o link onde, no segundo imediato após o clique, eu exporia senhas de banco, nudes, playlist de música brega e demais segredos da intimidade de um ser humano no formato internético.
Foi uma sexta-feira, e na quinta tinha sido igual, com uma dezena de outras armadilhas. O golpe digital é o novo preto. Alguém desconsidera no próximo a portabilidade de qualquer QI de esperteza, e tenta lhe botar na testa a acabrunhante placa de “otário”.
Tempos atrás, era preciso ir até a Avenida Central. Lá, exposto aos perigos naturais da selva urbana, você seria interpelado por um sujeito se dizendo premiado na Loteria Federal, o que era bom, mas o prêmio só seria pago na semana seguinte e ele precisava de dinheiro com tanta urgência, a coisa andava tão feia, que lhe daria o bilhete imediatamente em troca de qualquer mixaria. Era o conto do bilhete premiado. O vigarista tinha talento de ator, um Procópio Ferreira das calçadas, e elas estavam cheias de artistas do mal no esforço de ganhar o pão.
Os golpes do clique são mais cruéis porque, já que todo mundo deixou de ir à Avenida, eles pegam o cidadão, assustado pela pandemia, dentro do que supunha a segurança do sacrossanto lar, num momento de distração enquanto navega do babado do Caio Castro para o bom dia do zap da família. São muitos golpes, e agora acabou de chegar um zap informando da necessidade urgente de eu atualizar pendências na Caixa, onde nunca tive conta.
O golpe digital não tem faca, não tem sangue – mas mantém em todos o estresse constante de, por um descuido, dar o clique à pessoa errada e perder grana, sossego e afins de felicidade. Saudades da humanidade do paco no turbilhão da Avenida. Do fundo do link azul, o bandido espreita em silêncio a próxima vítima.
Fonte: O Globo (01/08/2022)
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