Vírus fez país perder uma década de avanços em esperança de longevidade, sobretudo entre homens e idosos; recuperação é esperada como em períodos pós-guerra, mas não virá em curto prazo, dizem cientistas
O fracasso da resposta à Covid-19 no Brasil provocou um nível de mortalidade em 2021 que implica uma redução de 1,8 ano na expectativa de vida média de seus cidadãos. O número, estimado num estudo liderado pela demógrafa Márcia Castro, da Universidade Harvard, coloca o país numa situação que pode ser difícil de reverter, mesmo depois da pandemia.
Anos perdidos
Queda na expectativa de vida provocada pela Covid-19 em cada estado em 2021 (em anos)
O estudo trabalhou basicamente com os dados que dizem quanto um brasileiro nascido hoje deve esperar viver caso as taxas de mortalidade se mantenham similares às deste ano, marcado pela segunda onda da pandemia. O impacto das mortes causadas pelo vírus fez essa idade cair de 76,74 anos par 74,96. A redução (uma comparação entre 2019 e 2021) pode parecer pequena em termos absolutos, mas representa um retrocesso de uma década.
O que a Covid-19 fez, tecnicamente, foi jogar o Brasil na situação em que estava antes de 2012, fazendo o país perder os avanços demográficos que obteve desde então, dizem Castro e seus coautores no artigo que publicaram ontem na revista Nature Medicine.
"Em resumo, a taxa de letalidade da Covid-19 no Brasil foi catastrófica", afirmam. "Ganhos de longevidade obtidos em alguns estados conquistados ao longo de anos ou décadas foram revertidos por essa pandemia."
O estudo aponta que, por causa da desigualdade com que esse efeito foi observado entre regiões, o retrocesso foi ainda maior em alguns estados, sobretudo no Norte. No Amazonas, o mais afetado, a expectativa média de vida caiu 4,4 anos, fazendo o estado recuar duas décadas naquilo que tinha ganho.
Desigualdades
A desigualdade entre classes sociais e entre os sexos também é ressaltada no estudo, com a longevidade de homens tendo sido mais afetada que a de mulheres. Enquanto as mulheres perdem 1,64 ano em média, os homens perdem 1,86 ano. Os cientistas também mediram o impacto na sobrevida adicional para pessoas que já completaram 65 anos, as mais vulneráveis ao vírus. Esse grupo perde 1,05 ano em média, um valor proporcionalmente maior de expectativa de vida adicional: 5,5%, contra 2,3% da população geral.
Outros países além do Brasil tiveram impacto demográfico significativo da pandemia, mas a expectativa de vida pode se recuperar e voltar a subir a partir de agora, como normalmente ocorre após grandes guerras ou mortandades de grande proporção. O caso do Brasil, porém, preocupa os pesquisadores, porque o país vacinou pouco nos primeiros meses do ano e ainda não tem uma política centralizada de distanciamento social e vigilância epidemiológica.
A pandemia já tinha tido um impacto de mortalidade grande no ano de 2020, e poderia ter ficado mais contida no início do ano seguinte, se tivéssemos vacinado com mais velocidade — explica o demógrafo Cássio Turra, da Universidade Federal de Minas Gerais, coautor do estudo na Nature Medicine.
— Mas mesmo tendo feito a nossa análise considerando só até o fim de abril, a gente tem praticamente certeza que em 2021 não vai haver essa recuperação, porque o efeto do excedente de óbitos em 2021 já é grande o suficiente para superar 2020.
A situação estimada pelos pesquisadores para 2021 foi comparada com a de 2020, que teve uma redução de 1,3 ano a 1,9 ano na expectativa de vida, dependendo da metodologia usada. Ao compara um ano inacabado com outro já encerrado envolve certas incertezas, afirmam.
Recuperação
Turra diz crer que, com uma vacinação acelerada para cobrir mais de 70% da população até dezembro, em 2022 o Brasil já poderia em tese ter uma boa medida de recuperação na expectativa de vida. No artigo, porém, os pesquisadores elencam outros obstáculos para essa recuperação.
Entre eles estão o os efeitos de longo prazo da doença em si, que são mal conhecidos, e uma redução verificada nos cuidados com doenças crônicas. Também geram incerteza as perspectivas de recuperação econômica e do orçamento de serviços públicos, que influenciam o acesso da população à saúde.
Carências
Se a esperança de recuperação ainda é uma incerteza, o motivo pelo qual o Brasil mergulhou num retrocesso maior que o de muitos países é bem determinado, afirmam Castro, Turra e seus coautores.
"O Brasil não carece de um sistema universal de saúde, nem de uma rede de agentes comunitários de saúde para cuidar de populações vulneráveis, nem de dados, nem de um contingente de pesquisadores que avançam incansavelmente no conhecimento e auxiliam políticas. O que falta ao Brasil é o compromisso de liderança para salvar vidas."
Fonte: O Globo (30/06/2021)
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