segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Planos de Saúde: Mudar regra de cobertura em plano de saúde no STJ pode ser retrocesso, diz presidente da ANS



Para presidente da ANS, regra de cobertura em análise pelo STJ pode encarecer planos e diminuir acesso 

Uma possível mudança nas atuais regras de coberturas médicas pelos planos de saúde vem gerando debates acalorados. O modelo vigente hoje é o que estabelece uma lista com cerca de 3 mil itens como cobertura miníma obrigatória - modelo conhecido como rol taxativo. Há uma discussão no Supremo Tribunal de Justiça (STJ) para que os planos de saúde passem a cobrir todos os procedimentos, o que foi batizado de rol exemplificativo. Já ocorreram duas sessões sobre o caso no STJ, em setembro e na quarta-feira, mas ambas foram adiadas, ainda sem data de uma próxima sessão. 

Na visão de Paulo Rebello, presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), a mudança para o modelo exemplificativo pode ser um retrocesso e encarecer o plano de saúde, porque as operadoras não terão mais um parâmetro dos gastos dos usuários dos convênios e vão precificar o plano nas alturas. Esse aumento, acrescenta, vai reduzir o acesso ao plano de saúde, em especial, do individual.  

Outro tema complexo em sua agenda é a análise da transferência societária de parte da carteira de planos de saúde individual da Amil para um grupo de investidores, formado por Fiord Capital, Serafin & Coelho e Henning Von Koss. Esse processo começou cercado de sigilos e uma avalanche de reclamações de usuários. “Não há como haver qualquer tipo de sigilo com o regulador. A matéria prima do regulador é exatamente a informação”, disse Rebello.  

Nos próximos meses, será divulgado o reajuste dos planos de saúde individuais, outro assunto polêmico, uma vez que as projeções do mercado apontam para um aumento na casa dos 15%. O presidente da ANS disse que o critério vai ser técnico, com aplicação da fórmula de cálculo que mensura esse percentual, a fim de manter a segurança jurídica dos contratos, mesmo sob pressões externas como crise econômica e eleições.   

Presidente da ANS só há sete meses, Rebello é advogado, tem 43 anos e carreira toda desenvolvida na área pública. Antes da agência, foi chefe de gabinete do deputado Ricardo Barros, ex-Ministro da Saúde, e atuou como procurador público na Paraíba, onde nasceu.  

A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:   

Valor: Como a ANS vê a consolidação de grandes grupos de saúde como Rede D’Or e SulAmérica, Hapvida e Intermédica? Há impactos para os beneficiários?  

Paulo Rebello: Não acredito, a princípio, que haverá impactos negativos aos beneficiários. Em algumas situações pode ser benéfico. No Nordeste, por exemplo, a rede credenciada da SulAmérica é fraca, mas a Rede D’Or tem o maior hospital de Fortaleza. Mas vamos acompanhar de perto os grandes grupos. Ano passado, criamos uma resolução normativa que acompanha as operadoras por porte. Não podemos exigir algumas regras de governança para empresas pequenas, mas sim para os grandes. Quanto à consolidação, temos hoje cerca de 700 operadoras, é o setor de planos de saúde mais pulverizado do mundo.  

Valor: Como está o processo de análise de transferência societária da carteira de plano individual da Amil/APS para o grupo investidor?  

Rebello: Eles apresentaram a documentação no dia 11. A gente analisou o material e há 23 documentos que eles ainda precisam apresentar. O prazo é de 30 dias, a contar do dia 15. Ou seja, até 15 de março, precisam apresentar toda essa documentação.   

Não há como haver qualquer tipo de sigilo com o regulador. A matéria prima do regulador é exatamente a informação” 

Valor: Com os documentos que já chegaram é possível saber se eles estão aptos a assumir a carteira?  

Rebello: Ainda não. Os documentos ainda são superficiais, precisamos de outros para fazer uma análise melhor. Não só os documentos, mas também de todo o cenário que estamos enxergando. Há uma sinalização que a partir da próxima quarta-feira, vão apresentar a documentação.  

Valor: Qual vai ser o tempo de análise por parte da ANS?  

Rebello: A nossa análise não vai ser muito demorada, não. Tem uma análise documental que passa pela assessoria normativa e, uma vez preenchidos os requisitos, o processo vai para uma área de acompanhamento econômico-financeiro. E aí fazemos uma análise aprofundada, que precisa ter balanços, questões societárias, se tem outros sócios vinculados.  

Valor: Quais os pontos mais sensíveis dessa transação, considerando o que já foi visto até o momento?  

Rebello: A transferência de carteira seguiu seu fluxo. Desde outubro, a gente começou a perceber um aumento de reclamações que estava muito alto. Estávamos acompanhando, conversando com a operadora. Daí vieram uma sucessão de fatos que nos chamaram atenção. Eles não haviam informado nada, não haviam passado nenhuma documentação específica [transferência societária]. Mesmo não tendo essas informações, nós já havíamos provocado a operadora sobre a APS e a UHG [UnitedHealth Group], que estaria saindo do país. Eles responderam à agência de forma muita rasa. São informações que precisamos analisar. Não há como haver qualquer tipo de sigilo com o regulador. A matéria prima do regulador é exatamente a informação. Se a gente não tem isso, nosso trabalho fica comprometido. Não tem como isso acontecer. Marcamos uma reunião presencial, dia 14, tivemos uma conversa franca, olho no olho. Apontamos todos os problemas e logo depois veio a decisão de indisponibilidade de transferência de cotas porque a documentação não havia sido apresentada à agência, as informações que haviam sido prestadas eram rasas, ou seja, em tese, não havia documentos explicando qual era a transação que eles queriam fazer.   

Valor: Após a agência destacar que não poderia haver sigilo com o regulador, eles se mostraram transparentes ou ainda há resistência?  

Rebello: Agora sim, eles estão passando as informações, apesar de ainda haver falta de documentos. Situações como essas têm três situações: o deferimento, o indeferimento ou o fechamento do processo até concluir toda a análise.  

Valor: Há informações de mercado de que se a transação não fechar com esse grupo de investidores, já há outros interessados.  

Rebello: Precisamos ver, primeiro, essa documentação. Não avançando, precisa ver qual é a estratégia comercial que a operadora vai adotar, se vai permanecer com essa carteira, se vai tentar repassar. Nossa obrigação é fazer essas análises como estamos fazendo com esse grupo ou com outro que, por ventura, venha surgir caso essa operação não se concretize.  

Valor: Houve questionamentos por parte da ANS à operadora sobre a razão dos descredenciamentos?  

Rebello: Esse movimento foi feito antes da transferência da carteira. Eles alegaram que foi uma questão comercial, que estavam avaliando um redimensionamento da rede. Foi uma sucessão de acontecimentos da Amil, esses novos investidores, esse redimensionamento da rede, [notícias de] saída da UHG no país. Ou seja, são informações que foram apresentadas à mídia ou em certa parte à agência, que acabaram gerando essa instabilidade no setor, essa insegurança do beneficiário e isso não tem como admitir.  

Valor: Eles estão substituindo por prestadores equivalentes?  

Rebello: Sim, estão. O que eles disseram que foi, principalmente, uma mudança de laboratórios para uma rede equivalente. Já fizemos uma primeira reunião com a operadora para que nos apresentem o plano que pretendem fazer. Agora estamos acompanhando para ver se vai ser cumprido.  

Todo o valor cobrado tem um estudo atuarial. Com um rol exemplificativo, a operadora vai cobrar mais pelo plano de saúde”  

Valor: O valor dessa transação é de R$ 2,3 bilhões para a carteira de planos de saúde e R$ 700 milhões pelos hospitais?  

Rebello: É mais ou menos esse valor. Confesso que não vi no detalhe. Esse é um dos documentos que está faltando para a gente receber. Mas é mais ou menos nesse patamar que eles informaram.  

Valor: A análise sobre o fôlego financeiro do grupo de investidores, caso eles precisem usar toda a reserva a ser repassada pela UHG também depende dessa documentação que não chegou?  

Rebello: Isso ainda está sendo analisando, esse é um ponto específico que vamos analisar.  

Valor: Se ocorrer algum problema de gestão com essa carteira, há risco de voltar para Amil ou é repassada para outra operadora?  

Rebello: Hoje, ela continua dentro do grupo econômico da Amil. Há instrumentos e ferramentas regulatórias para tentar minimizar quaisquer problemas dessa natureza e de forma rápida. Para uma má eficiência assistencial, indicamos um diretor técnico para acompanhar dentro da operadora. Se é um problema econômico financeiro, podemos adotar uma direção fiscal e nomeamos um agente para olhar o aspecto econômico financeiro.  

Valor: As operadoras resistem em ofertar plano individual com o argumento que a regulação da ANS torna o produto pouco atrativo. Ao mesmo tempo, há startups investindo nesse segmento. O que pode ser feito para reverter essa situação?  

Rebello: Há esses argumentos de que a operadora não pode rescindir plano individual, que o reajuste é determinado pela ANS. Eles reclamam que essa carteira acaba sendo prejudicada porque não é avaliada a situação específica de cada operadora. São assuntos que já estão na nossa agenda regulatória, estamos conversando. Tem movimentos ocorrendo no Legislativo e dentro da agência. A agência está aberta para conversar, para ver no que podemos avançar para melhorar para que esse plano seja ofertado cada vez mais. É um produto interessante, nem sempre as pessoas têm condições de ter um emprego, um CNPJ. Agora, por outro lado, a gente precisa olhar que há entrantes nesse mercado, há inclusive operadoras que pegam até uma faixa mais elevada e conseguem vender e ser superavitário. No Nordeste, prevalecem os planos individuais. As Unimeds vendem plano individual no Nordeste. Há um mercado, precisa ver de fato qual o gargalo, onde podemos avançar com isso.   

Valor: Fazer a gestão da saúde dos usuários é um caminho?  

Rebello: Sem sombra de dúvida. A gente precisa mudar a forma de fazer essa gestão de saúde. A gente hoje trata a doença, precisamos inverter isso e olhar para a promoção e prevenção à saúde. Temos um programa [de gestão da saúde] dentro da agência, inclusive com incentivo financeiro para quem aderir a esse programa. Hoje, temos um total de 49 milhões de usuários. Sabe quantos aderiram a esse programa? 1,5 milhão. A operadora é que adere ao programa. Veja como ainda precisamos mudar esse “mindset”. Temos a questão da sustentabilidade, o envelhecimento da população, maior longevidade, incorporação das novas tecnologias. Há essa discussão do STJ sobre o rol de procedimentos que vai ter um impacto em relação ao valor que é cobrado, tem a própria redução do rol que antes era de dois anos, reduziu para até 18 meses e agora a Câmara e Legislativo reduziram para até 270 dias. Com tudo isso, essas incorporações, esses valores vão ser incorporados e repassados aos beneficiários. São pontos e situações que precisamos olhar para ter calma na discussão.  

Valor: Sobre a discussão no STJ. Hoje, muitos usuários entram na Justiça e conseguem atendimento para itens não cobertos. Não seria o caso de mudar para o rol exemplificativo e por que haverá essa alta no custo se houver uma mudança?  

Rebello: Acho que pode ser um retrocesso. Todo o valor cobrado tem um estudo atuarial atrás disso. Com um rol exemplificativo, a cobertura é total e a operadora vai cobrar mais pelo plano, o que vai diminuir o acesso, afetando principalmente o acesso para o plano individual. Hoje, a gente tem um rol que atende a todas as doenças, tem mais de 3 mil tecnologias incorporadas, medicamentos ofertados para qualquer tipo de doença. A gente faz uma avaliação de tecnologia em saúde, faz um custo efetividade, tudo isso é feito através do rol. Quais são as consequências de tornar o rol exemplificativo? Pode haver uma situação específica da operadora e o beneficiário estabelecerem um contrato para determinas coberturas, sem um rol mínimo. Se você pactua entre as partes, aquilo é que vai ficar valendo. Além disso, vejo como uma situação concorrencial ruim porque com rol mínimo, a operadora pode por livre e espontânea vontade incorporar outra tecnologia que não esteja no rol. Não há nenhuma vedação nesse sentido, é um estímulo concorrencial. Um exemplo: hoje, o home care não está inserido no rol, caso a operadora ofereça ao beneficiário, você pode decidir por uma operadora com esse tipo de serviço em detrimento de outra que não faz isso. Como beneficiário, queremos sempre ter mais serviços, mais acesso. Isso é natural. Agora, isso tem um custo e a agência faz essa análise para que exatamente não haja qualquer prejuízo ou qualquer valor exorbitante que venha prejudicar o beneficiário. A gente avançou. Antes, havia uma janela de submissão [para inclusão de novas coberturas no rol], mas hoje, qualquer pessoa a qualquer tempo pode apresentar uma nova tecnologia para que a gente faça a análise, não é preciso fazer via sociedade civil, da academia. A incorporação de novas tecnologias, pela nova norma, se dá a cada seis meses a depender da complexidade da análise.   

Valor: A operadora pode fazer uma negociação à parte caso seja aprovado o rol exemplificativo?  

Rebello: É preciso respeitar a vontade entre as partes. Precisa ver de que forma o plano vai ser vendido. Porque tem a expectativa e a realidade. Quando há uma expectativa que vai ser atendido em x e quando a pessoa vê a realidade, pode ser em outro. Aí o problema da judicialização pode aumentar. Enfim, mas acho que está na mão do STJ, que tem as informações necessárias para encontrar o melhor caminho. A gente tem que aguardar a decisão, mas eu temo por algumas dessas situações.  

Valor: A ANS já está trabalhando no reajuste do plano individual, tem uma projeção? O BTG fez uma estimativa de 15%. Dá para aplicar um reajuste desse num cenário de crise econômica, pandemia e eleição?  

Rebello: A agência tem a lógica de manter a previsibilidade, da segurança jurídica, a segurança dos contratos. Foi aprovada uma fórmula em 2018 para esses anos seguintes. Nós passamos por um período de pandemia [em 2020] em que fomos cobrados por que estávamos aplicando um reajuste positivo num período de pandemia. Só que há uma lógica: a sinistralidade do ano passado é aplicada no ano seguinte. Em 2021, tivemos um reajuste negativo devido à baixa sinistralidade. E, a tendência nesse ano é que seja, sim, um reajuste positivo em razão da alta utilização. Nós vamos aplicar exatamente o que está na fórmula. A gente precisa passar essa segurança, não podemos estar regulando conforme os efeitos externos. O fato de ter eleição é uma coincidência, não temos o que fazer. A minha ideia é uma vez concluída essas informações [da sinistralidade de 2021], enviarmos, em maio, um ofício ao Ministério da Economia e logo em seguida fazer a divulgação do reajuste. É esse rito que adotamos independentemente de qualquer questão externa. A fórmula traz previsibilidade, transparência. Com isso, as pessoas do setor conseguem pegar as informações e conseguem fazer mais ou menos ‘um chega perto’ do que vai ser o reajuste. Há o fator de eficiência [das operadoras] que pode alterar um pouco essas projeções.   

Valor: Como está o projeto do chamado “open health”? Como fica a LGPD e o sigilo dos dados de saúde das pessoas?  

Rebello: O ministro falou sobre essa questão do “open health”, depois chamou a gente para conversar. Tivemos reunião com o Banco Central, onde essa ideia foi gestacionada. O BC tem um laboratório de inovação que criou o open banking e o open insurance. Daí veio essa ideia do open health, pegando o modelo australiano. Expliquei ao ministro que já temos dentro da agência um modelo de open health, que é um guia para portabilidade de planos de saúde. Ao contrário do open banking, que vê a questão financeira, na saúde temos uma questão mais específica: tem a LGPD, o cuidado que precisa ter com os dados dos beneficiários. Na lógica do open banking, você estimula a concorrência, o que também fazemos via portabilidade. No open banking, a pessoa consegue uma taxa de juros melhor, mas no nosso caso, não é possível fazer seleção adversa, não pode ofertar um preço menor ao beneficiário A em detrimento do beneficiário B porque o A faz exercício [atividade física]. São características diferentes do que é aplicado no open banking. Criamos um grupo de trabalho entre ANS, Ministério da Saúde e BC.  

Valor: Por que boa parte da ANS está com diretores interinos?  

Rebello: A indicação parte do presidente da República. Para qualquer decisão que é tomada dentro da agência é preciso ter um quórum qualificado de no mínimo três diretores, no nosso caso, que somos em cinco. [Os diretores substitutos] podem ficar 180 dias, podendo chegar até dois anos. Na ANS, hoje temos quatro vagas em aberto. Não é só na nossa agência. Tem na Anac, Anel, ANA. Essa é uma situação que estamos vivendo em todas as agências. Há uma dificuldade em relação às nomeações. Esse prazo dos dois anos expira agora dia 13 de março e esses três diretores terão que voltar aos seus afazeres normais dentro dos quais estavam vinculados. E a agência corre o risco de ficar com um único diretor, que sou eu, em razão dessa situação. A ANS não tem qualquer manobra, estamos aplicando a lei para que não haja qualquer tipo de descontinuidade nas agências reguladores e para que seja mantida uma perenidade dos serviços prestadores. Já tivemos reuniões com a Casa Civil e Secretaria de Governo para resolver essa questão. Não posso fazer qualquer tipo de deliberação, sem o quórum mínimo de três diretores. Com isso, corremos o risco de ter falta de diretores na agência, como já ocorreu no passado.

Fonte:  Valor (25/02/2022)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

"Este blog não se responsabiliza pelos comentários emitidos pelos leitores, mesmo anônimos, e DESTACAMOS que os IPs de origem dos possíveis comentários OFENSIVOS ficam disponíveis nos servidores do Google/ Blogger para eventuais demandas judiciais ou policiais".