Apesar da digitalização crescente em várias áreas, acelerada na pandemia, a chamada herança digital ainda é um ponto cinzento na Justiça brasileira
Em abril do ano passado, a família de João Vitor Duarte Neves, de 20 anos, contratou um escritório de advogados depois que o rapaz morreu atropelado em Santos, no litoral paulista. Além do acompanhamento do inquérito policial, veio outro pedido: que a família conseguisse acesso ao conteúdo do celular de João Vitor. Começou, ali, um processo cujo desfecho se deu só no mês passado, quando a Justiça enfim concedeu uma liminar para que os parentes tivessem direito a rever as fotos, vídeos e mensagens.
— De um lado estava a proteção de dados e do outro a dor de uma família que clamava pelo resgate e obtenção daquela herança digital. Havia um apelo afetivo, já que no aparelho estavam as últimas fotos e vídeos de um ente querido e que se perderiam em um mundo em que quase ninguém mais tem esses registros impressos — conta o advogado Marcelo Cruz, que assumiu o caso com os advogados Marcio Harrison e Octavio Rolim.
A questão emocional se sobrepôs e, em janeiro, o juiz Guilherme de Macedo Soares determinou que a Apple, fabricante do celular, concedesse o acesso da família ao conteúdo. Com a decisão, a empresa disse que poderia transferir os dados salvos no Apple ID , a conta que identifica cada usuário e seus dados pessoais. E as informações foram então passadas a um irmão de João Vítor.
Histórias desse tipo têm aumentado, mas estão longe de um desfecho comum. Apesar da digitalização crescente em várias áreas, e acelerada na pandemia, a chamada herança digital ainda é um ponto cinzento na Justiça brasileira. Para além do valor sentimental de fotos, vídeos e mensagens em celulares, o termo abrange um patrimônio que vale dinheiro, e que vai de perfis em redes sociais (algumas com milhares de seguidores e bem lucrativas) a milhas de companhias aéreas, cashbacks e até criptomoedas. É um universo imenso — e sem regulação.
— Não existe um regramento específico para tratar dessa matéria. No Código Civil, onde está a disposição sobre sucessão, não há previsão de sucessão dos bens digitais. E quando se vai para a esfera do Judiciário o juiz tenta adequar o Direito a cada caso. Obviamente isso gera muita insegurança jurídica. E vira uma roleta, dependendo do juiz ou do próprio tribunal — explica a advogada Fernanda Figueiredo, sócia-consultora da Innocenti Advogados.
Exemplos recentes expõem a falta de entendimento uniforme sobre a transmissibilidade desses dados digitais. Em janeiro, em Minas Gerais, uma família pediu acesso ao Apple ID para recuperar informações do celular e do laptop do parente falecido. O Tribunal de Justiça do estado entendeu que os dados faziam parte de uma herança digital, mas indeferiu o pedido. Disse que não havia justificativa econômica para transmitir esse acesso aos herdeiros.
Direito à privacidade
Na prática, falta não só jurisprudência sobre o patrimônio digital como clareza sobre se o direito de proteção à privacidade se estende também a quem já morreu.
Em março do ano passado, em São Paulo, a Justiça negou o acesso de pais ao perfil da filha morta em um acidente de carro. A alegação foi que em vida a moça havia marcado nas configurações da rede social o desejo de que o perfil fosse excluído na hipótese de falecimento.
Já em Mato Grosso do Sul, uma mãe conseguiu liminar para excluir o perfil da filha de uma rede social mesmo com a opção de que a conta seguisse ativa.
— Há um impasse entre seguir a lei de proteção de dados e da privacidade ou seguir as regras do Código Civil e entender que um perfil de rede social também é parte de uma herança digital e deve ser partilhado entre os herdeiros. No caso de perfis de pessoas famosas e com valor financeiro, também há indefinição. A falta de regulamentação deixa essa lacuna legal e ainda leva a conflitos entre legislações — explica a advogada Laura Morganti, sócia da área Cível e de Resoluções de Conflitos da Innocenti Advogados.
Fonte: O Globo (14/02/2022)
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