O primeiro semestre do ano legislativo marcou a promessa de alteração da Lei de Planos de Saúde (LPS)
O projeto de Lei 7.419/2006 representa a união de outros 279 projetos que, ao longo de 20 anos, pretenderam mudar as normas do setor da saúde suplementar.
Embora o número assuste, esses projetos todos podem ser divididos em sete blocos temáticos, quase todos voltados à ampliação da proteção do consumidor: ressarcimento ao SUS; inclusão de procedimentos no rol de cobertura da ANS; carências; atendimentos de urgência e emergência; reajustes de preços; rescisão e suspensão do contrato; manutenção de beneficiários aposentados ou demitidos no plano; credenciamentos de prestadores e reembolsos.
Na carona dessa promessa, é tranquilo compreender que uma alteração legislativa deste perfil, ainda que se revele importante conquista para os consumidores, não é a solução.
Assim como ocorreu em tantos outros setores econômicos relevantes, chegou a hora de uma reformulação do marco regulatório da saúde suplementar. É a única maneira de a saúde privada seguir contribuindo para os objetivos sociais e econômicos do país. Essa contribuição, em um bom resumo, ocorre toda vez que um indivíduo decide direcionar sua necessidade de saúde para um prestador privado, está abrindo espaço nos recursos públicos, a bem de serem redirecionados à população que efetivamente depende do SUS.
Lá atrás, entre 1998 e 2001, quando surgiu o marco regulatório setorial, a saúde brasileira era dividida em três feixes muito facilmente identificados. Havia o setor prestacional público, o setor assistencial beneficente e o setor privado propriamente dito. Naquela época, as operadoras de planos de saúde eram a única via de acesso à prestação privada, sendo responsáveis pela intermediação do consumo dos serviços oferecidos por profissionais de saúde, hospitais e clínicas.
A estratégia de regulação independente foi feita a partir daquele cenário. Buscava-se ampliar e qualificar o acesso ao setor privado. Viu-se que a saúde privada tinha força para capturar uma maior demanda, caso sua prestação fosse mais atrativa ao consumidor.
Assim, definiu-se um conjunto mínimo de assistência oferecida e criou-se uma entidade independente (a ANS) para regular a saúde suplementar em sua nova versão. E o plano deu certo. Entre 2000 e 2014, o número de beneficiários crescia 4 milhões ao ano, chegando à casa dos 50 milhões já em 2013. O mercado também se desenvolveu, surgindo praticamente 2000 operadoras de planos de saúde no país. Mas os resultados alcançados foram se perdendo. Nos últimos dez anos, o número de vidas seguradas se estabilizou nos 50 milhões, não acompanhando sequer o crescimento populacional. Já o número de operadoras regrediu consideravelmente. Hoje, são menos de 700.
Na onda de revezes, houve o envelhecimento da população. O número de idosos no Brasil aumentou 57,4% em 12 anos. Esse fato faz crescer o custo e diminui a capacidade individual em colaborar com os gastos de saúde. E a principal fonte de financiamento para o custeio da saúde da população idosa são os consumidores jovens. Mas eles têm se interessado cada vez menos em contratar planos de saúde, dificultando o equilíbrio mutualista.
Outro grave problema foi a instalação de uma tensão entre operadoras e prestadores de serviços de saúde. Entre acusações de mau uso, desperdícios, fraudes, baixos pagamentos etc., surgiu um ambiente de desconfiança recíproca, cujo efeito é uma burocracia excessiva ao consumidor. A verticalização se tornou a resposta remediativa mais frequente para esse problema. Hoje, as operadoras já não só intermedeiam a relação entre paciente e prestador, mas também executam os serviços assistenciais propriamente ditos.
Além disso, o avanço da tecnologia fez com que surgissem mais diagnósticos e muito mais alternativas terapêuticas. Essa avalanche tecnológica não é assimilada velozmente pelo setor, especialmente por estabelecer filtros de relevância, voltados a incorporar somente as tecnologias que representem efetivo avanço para o sistema. Aqui, vê-se constante frustração da expectativa do consumidor, que reiteradamente leva à Justiça sua intenção de receber o tratamento que lhe foi prescrito (em 2023, foram ajuizadas 25 ações por hora sobre o tema). Essa massa de ações transformou a Justiça no principal regulador do setor, em detrimento da ANS. Mas o Judiciário é um agente não vocacionado para a função, que regula a saúde suplementar consumidor a consumidor, afastando a noção de um sistema de saúde.
Então, o que se tem hoje é um mercado estanque, concentrado, dominado por grandes operadoras, pouco competitivo, de enorme hostilidade entre os atores, hiperjudicializado e que, por tudo isso, oferta um produto cada vez mais custoso e menos acessível. A partir desse quadro, fica fácil perceber que a reforma da LPS pode garantir a permanência do consumidor no contrato por certo tempo, mas não vai resolver a derrocada da saúde suplementar.
A solução legislativa efetiva passa por encerrar o conceito de que o setor suplementar se limita ao que a LPS define como plano de saúde. Essa limitação restringe o espaço regulatório da ANS a um perfil de prestação que já não representa o acesso único aos serviços privados. Se em 2001 (ano de criação da agência) essa fórmula foi vitoriosa, hoje não é mais.
De um lado, porque as operadoras não são mais exclusivamente intermediadoras de serviços. Essa mudança não reorientou a atuação da ANS, que não tem poder para regular nem a assistência direta ao beneficiário, tampouco a relação entre operadoras e prestadores. De outro, porque nos últimos anos surgiram no mercado as clínicas populares, os cartões consultas, os serviços de telessaúde e demais alternativas assistenciais, que também não estão sob o guarda-chuva da ANS, apesar de atenderem mais de 40 milhões de pessoas, suplementando a saúde pública tanto quanto as operadoras.
A instalação de um novo marco regulatório passa especialmente por modificar as competências da ANS, permitindo que a regulação da saúde suplementar permeie todo o mercado. É claro, não se deve olhar a regulação como ampliação da burocracia, que simplesmente aumenta os custos da prestação. Impõe-se uma regulação como elemento pacificador das relações e impulsionador do mercado e da concorrência, orientando esse crescimento em harmonia com as finalidades públicas conectadas à saúde.
Com essa nova função, a ANS voltaria a ser a grande calibradora da saúde privada. Poderia estimular novamente o crescimento do setor, priorizar a prevenção e promoção da saúde, impulsionar novas tecnologias, novas formas de remuneração e contratação, auxiliar no combate à corrupção do setor, resolver disputas entre tomadores e prestadoras de serviços. Em resumo, reposicionando-se diante da atual realidade da saúde suplementar.
Fonte: Valor (26/07/2024)
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