sábado, 7 de maio de 2022

TIC: Quando Elon Musk resolve comprar o Twitter… e pode fazê-lo



Algumas reflexões sobre os impactos da operação sobre os usuários e sobre a democracia

A notícia da aquisição do Twitter por Elon Musk pode ser analisada sob diversas perspectivas. Não obstante, o objetivo do presente artigo é explorar as consequências do fato de Musk se tornar o único proprietário de uma das mais importantes redes sociais do mundo. Daí as compreensíveis perguntas: redes sociais com a dimensão, o número de usuários e a penetração do Twitter podem ter propriamente um dono? Podem ser objeto de propriedade ou controle privados? Podem ser reguladas exclusivamente pela vontade do dono?

Para muitos, a resposta parece ser afirmativa. A se ver pelas comemorações do presidente Jair Bolsonaro[1] e vários dos representantes da extrema direita no Brasil[2], parece que esse grupo realmente acredita que o Twitter será ajustado às concepções políticas de Elon Musk. Como o bilionário já fez várias declarações no sentido da necessidade de maior amplitude da liberdade de expressão e de restrições à curadoria de conteúdos pelas plataformas, muitos acreditam que a aquisição representará o “passe livre” para a utilização irrestrita das redes sociais, inclusive para o fim de disseminar notícias sabidamente falsas.

Nos Estados Unidos, as reações dos republicanos não foram diferentes[3]. Aliás, assim como Bolsonaro e aliados tiveram aumento atípico de seguidores no Twitter após a notícia da aquisição do Twitter por Musk, o mesmo ocorreu com políticos da direita norte-americana[4].

Apesar das preocupações naturais que o assunto traz para o mundo e para a realidade brasileira, especialmente diante das proximidades das eleições e dos acordos já firmados entre o Twitter e o TSE[5], verdade seja dita que pouco se sabe sobre o que efetivamente ocorrerá.

Em podcast do Estadão sobre o tema, Pedro Doria[6] lembra que, não obstante o perfil libertário de Musk, algumas das posições do bilionário podem comprometer sensivelmente os planos da extrema direita, especialmente na parte em que defende maior transparência no ambiente informacional, o que seria obtido com a abertura dos códigos dos algoritmos e com a proibição de bots e contas automatizadas.

Da mesma forma, pouco se sabe sobre os reais propósitos de Musk e se o seu verdadeiro intento não é utilizar o imenso potencial dos dados dos usuários do Twitter para alimentar e dinamizar vários dos seus outros negócios.

Entretanto, quaisquer que sejam os propósitos de Musk e quaisquer que sejam as modificações que ele porventura vá imprimir ao Twitter, a aquisição é preocupante pelo simples fato de evidenciar que um só homem terá controle absoluto sobre a importante praça pública que se tornou o Twitter.

Se tal circunstância não representa propriamente uma novidade no ambiente informacional, na medida em que há outros exemplos de plataformas com semelhante grau de controle, consolida a preocupação quanto ao fato de que, cada vez mais, muitas das nossas interações e emanações de cidadania digital, assim como as nossas próprias democracias, passam a depender das orientações políticas, vieses e vontades de poucos indivíduos, em relação aos quais não há nenhum controle efetivo ou accountability.

Em casos assim, por mais que o maior ativo do Twitter sejam os seus usuários, tudo leva a crer que não haveria possibilidade de reação substancial por parte daqueles desagradados com as novas políticas de uso, pois, além disso exigir altos e improváveis esforços de coordenação, não parece haver substituto equivalente para o Twitter. Dessa maneira, para onde iriam esses usuários?

Já mostrei, em outros textos[7], como a soberania do consumidor vem se tornando uma falácia também no mundo virtual, em razão de diversos fatores, dentre os quais a falta de opção por parte dos usuários, inclusive no que diz respeito ao futuro, considerando as dificuldades de entrada em mercados com essa configuração, especialmente em face dos efeitos de rede diretos e indiretos.

Tudo leva a crer que, na realidade, qualquer que seja a eventual mudança de orientação do Twitter, os seus usuários estarão a ela submetidos, ainda que tenham que suportar restrições indevidas a seus direitos e a degradação do espaço informacional diante de um ambiente de “vale tudo”.

A outra opção, que é a saída espontânea da plataforma, também não é adequada, pois, além da perda de um importante espaço de interação por parte de usuário, os não usuários são igualmente afetados por espaços disfuncionais de comunicação, que podem insuflar a violência e a polarização, comprometendo a própria democracia.

Tal cenário mostra as razões pelas quais eventual mudança de orientação do Twitter, no sentido do que vem pretendendo a extrema direita no Brasil e nos Estados Unidos, não é um problema apenas de relação de consumo ou que afete exclusivamente os usuários da plataforma. É um problema democrático e que afeta a todos, usuários ou não.

Dessa maneira, é forçoso reconhecer a inadequação das noções de propriedade e controle privados para tais plataformas e a necessidade de se pensar em uma regulação de tais agentes que assegure os direitos dos usuários, não os deixando reféns da vontade do bilionário “da vez”, ou seja, daquele que conseguir adquirir a plataforma.

Shoshana Zuboff[8] muito bem resumiu essas preocupações em uma série de tuítes da qual eu destaco os seguintes:

“(…) Without law power is dangerous.

(…) The result: people, society & democracy are at the mercy of the individuals who exercise ownership and/or executive control over information. We beg Mr. Zuckerberg to stop the social wreckage, honor our privacy, protect us from disinformation, but he refuses.

(…) Mr. Musk wants to join the gods who rule the information space and control answers to the essential questions of knowledge, authority, and power in our time: Who knows? Who decides who knows? Who decides who decides? But we never elected them to govern. We need laws not men.

(…) Abdicating our information spaces to private control concentrates unaccountable power in the regime of surveillance capitalism. Our fate should not depend on the whims of individuals. What they decide today may be undone tomorrow. No democracy can survive these conditions.”

Mesmo no auge do liberalismo do século 19, já foram necessárias algumas formas de limitação da propriedade privada em prol dos interesses coletivos. Especialmente a partir do século 20, começou-se a cogitar igualmente de deveres positivos, por parte de titulares de propriedade ou controle, em algumas situações, tais como as de monopólios e essential facilities. Em tempos mais recentes, tornou-se importante a invocação da eficácia horizontal de direitos fundamentais, a fim de assegurar que tais direitos sejam igualmente observados nas relações privadas, na medida do possível.

Todas essas discussões são ainda mais relevantes em se tratando de plataformas digitais, que se tornaram, elas próprias, verdadeiros gatekeepers, sendo que, no caso específico das redes sociais, tornaram-se igualmente as próprias esferas públicas de interação. Isso exige a reconfiguração das noções de propriedade e de controle, sem o que a democracia e os princípios a ela inerentes, como o devido processo legal, dificilmente poderão resistir.

O atual contexto digital mostra que o apetite histórico de agentes econômicos poderosos por mecanismos para controlar as “regras do jogo”– inclusive por meio de expedientes como a captura da regulação estatal – hoje passa a se direcionar para uma outra e ainda mais intensa forma de poder: o controle do próprio campo ou da arena onde o jogo se trava.

Tais pretensões podem assumir níveis inimagináveis de poder, tal como ocorre quando se constrói o próprio mundo virtual como reflexo de uma visão estrutural de controle, como parece ser o caso do metaverso. Isso já mostra, inclusive, que o caso do Twitter é apenas um dentre outros em que se coloca o risco da tirania privada sobre espaços que, por vários motivos, deveriam ser considerados públicos, pelo menos em alguma medida.

Daí por que, diante da aquisição sob análise, a maior preocupação não é propriamente se o Twitter vai mudar para se adaptar à visão libertária de Elon Musk. A real preocupação diz respeito a saber como pode ser compatível com a democracia que a visão de mundo e a vontade de um só homem, na condição de proprietário de uma plataforma como o Twitter, sejam os únicos referenciais de governança desta.

Fonte:  Jota (04/05/2022)

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