Notícias ruins podem reforçar um contexto de desesperança e ansiedade, veja como lidar
Crise econômica. Pandemia. Ataques à democracia. Guerra. Aquecimento global. E violência, muita violência. O mundo não dá trégua, e o noticiário também não. Mas às vezes a sequência de notícias duras provoca uma sensação de desânimo que pode afetar a saúde mental de algumas pessoas. Uma vez que não dá para fingir que as coisas não estão acontecendo, e se manter informado é absolutamente essencial nos dias de hoje, é preciso desenvolver ferramentas para lidar com isso.
Uma pesquisa da Associação Americana de Psicologia feita em 2017 mostrou que mais da metade dos americanos dizem se sentir estressados, ansiosos, cansados e com dificuldades para dormir em razão das notícias ruins. De lá para cá, não surgiram motivos para imaginar que o cenário melhorou, pelo contrário.
Segundo o psicólogo Stélios Sdoukos, da The School of Life, uma organização com sede em Londres dedicada ao estudo da inteligência emocional, o noticiário pode contribuir para deixar a pessoa mais pessimista e ansiosa, aumentando sintomas depressivos. O vínculo não é necessariamente direto, mas o contexto de desesperança interfere.
— As pessoas se sentem cada vez mais afetadas pelas notícias, como crimes hediondos como do médico que estupra pacientes ou de um homem que mata a família toda. Não há como ficar indiferente. Estamos expostos às notícias o tempo todo e precisamos delas para entender o que está acontecendo ao nosso redor. Mas o mal-estar é legítimo porque é coerente com aquilo que estamos lendo. Ser afetado mostra que nossa humanidade está presente — explica Sdoukos.
Se você é uma das pessoas que anda desanimada com as notícias, veja como lidar com elas de forma positiva:
Aceite o mal-estar
Você fica sabendo de um crime chocante pelo jornal ou pela TV. Sente um aperto no peito, revolta ou tristeza. De acordo com o psiquiatra Ricardo Krause, presidente nacional da Associação Brasileira de Neurologia e Psiquiatria Infantil e Profissões Afins (Abenepi), a solução não passa por ignorar esses sentimentos:
— É preciso se permitir sentir as emoções. As pessoas associam emoção ao descontrole, e acham que é algo ladeira abaixo, como se ficar triste em um momento significasse ficar deprimido ou desesperado depois. Então, fazem de conta que não estão sentindo nada. Mas não é assim. Quando você não trata da coisa no início ela progride — explica o médico, salientando que o uso abusivo de álcool e drogas muitas vezes vem dessa tentativa de mascarar os sentimentos.
Tenha consciência
Pare, pense, entenda que algo está acontecendo dentro de você. É preciso dar tempo para assimilar o impacto de uma notícia ruim, sem deixar evoluir para o desespero.
Anotar os sentimentos num diário de papel, ou fazer um acompanhamento em apps como o Daylio, com um registro diário de emoções, é algo muito saudável.
— Isso faz com que a pessoa não aja no automático. Quando alguém nomeia os sentimentos, presta atenção neles. Quando não tem essa consciência, torna-se meramente reativo. Inteligência emocional não é só saber lidar com os outros e conter emoções: é saber das próprias emoções e agir com consciência — afirma Krause.
Stélios Sdoukos sugere uma estratégia usada na Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT, em inglês):
— É importante observar os pensamentos. Quando você pensa “nada vai dar certo para mim”, tente se afastar disso, adicionando uma frase: “Observo que estou tendo o pensamento de que nada vai dar certo para mim”. Isso ajuda a mente a processar que é só um pensamento e não uma verdade absoluta. O manejo não vem da eliminação dos sintomas de ansiedade, mas de uma outra relação com emoções que gostaria de eliminar.
Segundo o psicólogo, para lidar com a ansiedade gerada por essa exposição é importante entender o que pode te deixar mais ou menos ansioso. Algumas situações são mais difíceis de serem processadas e “pode ser coerente se afastar, trabalhar sua relação com o consumo de um assunto específico”.
Busque a mudança
O sentimento de indignação diante de alguma notícia pode servir como estopim para uma reflexão — e talvez até ação — crítica e produtiva na sociedade.
— Quando a pessoa lê sobre o crime do anestesista, ela rechaça, mas será que na nossa cultura, na nossa comunidade, não alimentamos isso com piadas machistas? No caso da morte de um homem que fazia uma festa com tema de um partido, vale refletir sobre como as pessoas falam de política hoje. O diálogo não existe, está todo estereotipado, então se a pessoa sinaliza concordância com um lado o outro pode transformar um almoço de família numa guerra, quando a interação deveria ser diferente. A gente não dispara o tiro, mas pode disparar tiros simbólicos — diz Sdoukos.
O psiquiatra Ricardo Krause considera que partir para a ação pode ser positivo tanto na esfera pessoal quanto coletiva.
— O que posso fazer para modificar isso? Agir, trabalhar comunitariamente, distribuir comida, construir casa, contar história para criança, conversar com idosos. Há muito a ser feito. É pensar global e agir local. E se você faz uma coisa para mudar aquela situação, neutraliza a sensação de impotência. É fantástico porque você não se sente paralisado.
O poder da palavra
Evite empregar um discurso pessimista depois de ler alguma coisa que te desanima. Para Krause, é importante saber que a forma de falar, mesmo que para si mesmo, tem impacto.
— É sério e as pessoas não levam a sério a força das palavras. A comunicação não violenta é um caminho de prestar atenção no que se fala e como se fala. Substitua frases como “está tudo uma droga mesmo”, “é o fim do mundo” ou “pior não pode ficar” por coisas como “vamos achar uma solução” ou “vai passar”. Quando diz algo com esperança, você não permite que o ciclo de desespero se concretize — diz.
Mesmo na hora de conversar sobre o assunto, é preciso cuidado. Falar por falar pode ser apenas uma forma de remoer um assunto. O médico recomenda, em contrapartida, procurar alguém que ajude a pensar sobre aquilo, por que incomoda, o que pode ser feito.
Seu universo
Se muitas coisas não vão mesmo bem, muitas outras mostram a beleza da vida e inspiram gratidão. É preciso saber onde encontrar isso, seja no seu microcosmo (sua casa, sua família, seu trabalho), seja dentro de si mesmo. É para isso que devemos voltar os olhos nos momentos de desalento.
— É importante construir uma vida que tenha sentido para a gente, que vale a pena ser vivida. Os pensamentos podem nos arrastar para um piloto automático e nos levar a uma vida não alinhada com nosso propósito. Esses valores, o que faz o coração bater mais forte, são o porto seguro para voltar — diz Sdoukos.
Krause concorda que é importante separar as coisas negativas do noticiário da nossa vida cotidiana:
— Quando estou com medo vou lembrar de coisas boas, ver uma cena que me emocione, fazer um carinho num cachorro, tomar um sorvete, brincar com meu filho... É preciso uma caixa de ferramentas contra as coisas que nos deixam desconfortáveis.
O próprio noticiário pode ajudar a trazer esse alívio, com informações sobre coisas prazerosas, como cultura, viagens e gastronomia, além de dicas e orientações para uma vida melhor.
Fonte: O Globo (24/07/2022)
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