segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Comportamento: Casos de ansiedade e depressão avançam entre os brasileiros

 


Pandemia, inflação, divisão política aumentam estresse num país onde transtornos mentais já são comuns 

Por muito tempo, vigorou no imaginário popular a ideia do brasileiro como “um povo alegre, festeiro, que dribla todas as dificuldades com o célebre jeitinho, um país feliz”, como dizia o escritor João Ubaldo Ribeiro em seu livro “Viva o povo brasileiro”, uma epopeia às avessas da realidade nacional.  

As evidências que contrariavam esse estereótipo de país eram mais ou menos deixadas de lado, enquanto persistia a exaltação de um temperamento bem-humorado, uma disposição favorável para enxergar o mundo imune às vicissitudes da vida. Não se dava muita atenção à saúde mental, mesmo tendo a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertado há pelo menos cinco anos que o Brasil era o país com o maior índice de ansiosos do mundo (9,3%, ou 18 milhões de pessoas), e o terceiro em prevalência de depressivos (5,8%, ou 11 milhões), muito próximo dos Estados Unidos (5,9%).    

Mais recentemente, protestos, preços altos para serviços ruins, desigualdade social, divisão política, reações exacerbadas nas redes sociais foram se acumulando e contribuindo para uma mudança de estado de ânimo. Tudo isso culminando com uma das maiores tragédias sanitárias já vividas neste país - a pandemia de covid-19, com quase 700 mil mortes e 35 milhões de casos conhecidos.  

“Mesmo antes da pandemia, o Brasil já era um dos países com mais transtornos mentais”, confirma a psiquiatra Vanessa Favaro, diretora dos Ambulatórios do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. “As experiências traumáticas associadas à pandemia ou à morte de pessoas próximas, à mudança na rotina de trabalho ou nas relações afetivas, o isolamento, as perdas de renda e emprego, tudo isso representou mais situações de estresse e mais sofrimento psíquico.”  

Fundada há 23 anos dentro do Instituto de Psiquiatria da USP, a Abrata (Associação Brasileira de Familiares e Portadores de Transtorno Afetivo) tem o objetivo de dar apoio mútuo e informação científica em grupos de pessoas com diagnóstico de transtornos de humor e suas famílias. Durante a pandemia, as reuniões dos grupos de apoio migraram para o mundo virtual. No online, passaram a receber gente de todo o Brasil e até do exterior.  

“Percebemos nos relatos das pessoas um discurso de luto, de isolamento social, da falta do convívio familiar, do bate-papo do dia a dia, a troca do cafezinho, do abraço”, comenta a vice-presidente da entidade, Neila Campos. “A pandemia acelerou um processo de evidenciar a preocupação com os transtornos mentais no mundo contemporâneo, que a Organização Mundial da Saúde já sinalizava.”    

A edição de 2021 da pesquisa Vigitel do Ministério da Saúde, divulgada em abril, trouxe pela primeira vez dados sobre a prevalência da doença no país. Segundo o levantamento, 11,3% dos brasileiros disseram ter recebido diagnóstico médico de depressão no ano anterior, o que correspondia a cerca de 23 milhões de pessoas, quase o dobro do número divulgado pela OMS em 2019, que indicava a existência de 11 milhões de brasileiros com depressão.  

O levantamento baseou-se em ligações telefônicas para 9 mil pessoas e registrou um aumento de casos em todas as faixas etárias. As mulheres foram as que mais impulsionaram a alta (de 13,5% para 18,8%), com mais do que o dobro da prevalência registrada entre os homens (de 5,4% para 7,8%).  

“Quando se analisa esses números, duas coisas chamam atenção”, comenta a psiquiatra Alexandrina Meleiro, membro do conselho científico da Abrata. “Os dados mostram que o sofrimento prolongado e as perdas da pandemia podem ter gerado ansiedade, depressão e insônia mesmo em quem não apresentava tendência prévia, mas também pode ser que o estigma diminuiu, a ficha caiu e as pessoas passaram a falar mais sobre transtornos mentais, a admitir que têm sintomas depressivos ou ansiosos e a procurar ajuda.”  

Notícias de pessoas admiradas e respeitadas que assumem ter tido a doença também contribuíram para diminuir o estigma da doença, como foi o caso da ginasta olímpica americana Simone Biles: “Assim que eu piso no tatame, sou só eu e a minha cabeça, lidando com demônios. Tenho que fazer o que é certo para mim e me concentrar na minha saúde mental e não prejudicar minha saúde e meu bem-estar”, disse a ginasta ao abandonar a final dos Jogos Olímpicos de Tóquio. Mais recentemente, foi a vez do cantor Justin Bieber, que, após a sua participação no Rock in Rio, cancelou todos os shows na América Latina para preservar a saúde mental.  

“Eu tenho uma depressão que vai e volta, e desta vez foi profunda”, contou o ator Marco Nanini à revista “Veja Rio”, em março do ano passado. “Via TV e ficava arrasado, as pessoas morrendo, as imagens dos lugares que eu frequentava, restaurantes, teatros, tudo fechado. A falta de convívio com o povo da cultura também foi um baque. Sem conviver, a gente não se ouve, não se conecta. Do ponto de vista individual é triste e para a cultura, um problema.”  

“Eu caí. Eu caí legal mesmo. E estou lá... No fundo do poço”, desabafou o youtuber Felipe Neto, no início deste ano, em sua rede social. No mesmo post, relatou como está lidando com a doença. “Tentar enfrentar a depressão sozinho é como entrar em campo sozinho e sem goleiro e tentar vencer o Flamengo. Ou o Corinthians [...]. Você não vai vencer. Eu só estou aqui, de pé, porque desde que afundei meus amigos organizaram um rodízio pra ficar sempre gente na minha casa, 24 horas.”  

“Quando a depressão chega, você sente uma tristeza sem razão, pessimismo, uma desmotivação até para se levantar da cama de manhã, não consegue ter prazer em nada, tudo é pesado”, conta a ortodontista Marta Axthelm, presidente da Abrata, diagnosticada com depressão e transtorno bipolar. Romper o silêncio, compartilhar informações e procurar ajuda foi um dos motivos que a levaram à associação. Por falta de informações e pelos tabus em torno dos transtornos psiquiátricos, os diagnósticos tendem a ocorrer tardiamente, o que em geral leva ao agravamento do quadro clínico dos pacientes.  

Não se conhecem completamente os mecanismos da depressão. Sabe-se que se trata de uma doença biológica, em parte geneticamente determinada, que tem um fundo psicológico e impacto ambiental. Sabe-se também que, por trás dos episódios de depressão, existe uma disfunção do cérebro, relacionada a um desequilíbrio de neurotransmissores, compostos químicos que levam informação de uma célula a outra no sistema nervoso. “A medicação e a terapia são ferramentas complementares que devem ser usadas juntas ou separadamente, dependendo da situação do paciente”, afirma o professor de psiquiatria Mário Juruena, que coordena os projetos de pesquisa do mestrado em transtornos afetivos no Instituto de Psiquiatria, Psicologia e Neurociências do King’s College de Londres.   

Os resultados do tratamento não são imediatos e podem demorar algumas semanas para a pessoa sentir os efeitos. Além disso, mesmo quando os pacientes procuram ajuda e conseguem o tratamento adequado, muitas vezes desistem por acreditarem que é preciso reagir por conta própria e que os medicamentos provocam dependência. “Quando a pessoa aceita o tratamento, que pode incluir a medicação, é poupado de um sofrimento maior”, afirma Marta Axthelm. “É preciso entender também que não existe uma medicação, dosagem e esquema de tratamento único, vale a característica de cada um.” 

“A depressão atinge pessoas diferentes de modo diferentes”, acrescenta a psiquiatra Vanessa Favaro. “Não é um problema comum, que você pode resolver com cirurgia, por exemplo. É mais semelhante à diabete ou à pressão alta, em que se identificam os fatores que melhoram e pioram os sintomas do paciente, e o tratamento é prolongado e envolve vários profissionais. O importante é que, principalmente se não for tratada, a depressão pode voltar em diferentes períodos da vida ou se tornar crônica.”  

Ela explica que há uma diferença também em relação à diabete e pressão alta. “Estas são doenças em que a medicina entende os mecanismos envolvidos, no caso da depressão ainda há muito a ser descoberto.” Daí as controvérsias que volta e meia surgem sobre os tratamentos. A mais recente se refere a um estudo de pesquisadores da University College London, publicado no periódico “Molecular Psychiatry”, que causou polêmica na comunidade científica, ao questionar o uso de antidepressivos e refutar a explicação de que a depressão seja resultado de uma alteração nos níveis de serotonina no cérebro.   

Segundo Mário Juruena, esse artigo deve mesmo ser questionado: “As primeiras medicações foram descobertas por acaso e desencadeavam uma série de efeitos adversos, sendo utilizadas somente nos casos mais graves”, lembra. “Nos anos 1980, veio o Prozac e similares, que atuavam nos circuitos da serotonina, não resolviam os casos mais graves, mas com menos efeitos adversos e eficácia nas depressões menos graves. Estes antidepressivos, a partir da década de 1990, popularizaram o uso de medicamentos para quem tinha depressão e intensificaram a pesquisas para novas medicações mais eficazes que ajudam muitos pacientes resistentes ao tratamento.”   


Segundo Juruena, a tristeza e algumas reações emocionais ao estresse da pandemia e às outras causas são manejáveis e, com o tempo e a capacidade individual de enfrentar dificuldades, a pessoa consegue de alguma forma seguir adiante e retomar o equilíbrio natural. “Mas quando já existe uma predisposição biológica, uma vulnerabilidade que também pode ser psicossocial, a pessoa acaba adoecendo. E isso é muito sério porque a depressão é o transtorno mais incapacitante de todas as doenças médicas - mais que doenças cardiovasculares, oncológicas, neurológicas, porque o indivíduo deprimido em geral perde seu potencial no período fértil e na fase mais produtiva de sua vida. Geralmente impacta dos 25 aos 50 anos, e contribui para perder oportunidades de trabalho, perder relacionamento, renda, gera custos para o sistema de saúde e perdas tanto para o doente como para a família que fica sobrecarregada.”   

Existem critérios para o profissional diagnosticar a doença, entre os quais a ausência de interesse ou prazer em atividades de que a pessoa costumava gostar, alterações do sono ou do apetite ou de peso, redução da atenção, concentração e da memória, baixa autoestima, irritabilidade por um período.  

“É uma doença democrática, pode afetar desde crianças a idosos”, lembra Alexandrina Meleiro. “Nesse sentido, os adolescentes foram particularmente afetados durante a pandemia. Para um adulto, dois anos pode não ter feito muita diferença, mas para uma criança ou um adolescente que iria começar a ter experiências de contatos sociais, a pandemia foi um gatilho para o desenvolvimento de transtornos de ansiedade.”  

Os especialistas enfatizam que a depressão e a ansiedade associada não são um problema contemporâneo, apesar de serem apelidados de “mal do século XXI”. Na Grécia Antiga, a depressão já era chamada de melancolia e descrita de uma forma muito semelhante ao quadro atual. Mas, certamente a insegurança, a modernidade alienante, a desigualdade e a percepção de vivermos tempos perturbadores contribuíram para o aumento de casos.  

“As informações que temos agora sobre o impacto da covid-19 na saúde mental do mundo são apenas a ponta do iceberg”, declarou o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus. “Este é um alerta para que todos os países prestem mais atenção e façam um trabalho melhor no apoio à saúde mental de suas populações.”  

A Organização Mundial da Saúde estima que no mundo cerca de 300 milhões de pessoas sofram de depressão. Mas esse número pode ser maior: a covid-19 desencadeou um aumento de 25% nos casos de ansiedade e depressão, expondo como os governos estavam despreparados para lidar com o impacto na saúde mental e revelando uma escassez global crônica de recursos para lidar com esses problemas.  

Em 2020, os governos em todo o mundo gastaram uma média de apenas 2% dos orçamentos gerais de saúde na área mental, sendo que os países de renda média baixa investiram menos de 1%. Em nota conjunta com a OIT (Organização Internacional do Trabalho), a OMS estima que 12 bilhões de dias de trabalho são perdidos anualmente devido à depressão e à ansiedade que custam à economia global quase US$ 1 trilhão. Além desses impactos, chama a atenção que, quando não tratada, a depressão aumenta o número de outras doenças e a mortalidade.   

“Na América Latina e particularmente no Brasil, as questões de pouco reconhecimento, preconceito, falta de estrutura de assistência para transtornos mentais, especialmente na população mais pobre e mais sofrida, têm dificultado a capacidade de resposta adequada a esses problemas”, afirma o psiquiatra Paulo Rossi Menezes, professor de medicina preventiva da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto. Especialista em epidemiologia psiquiátrica e saúde mental global, Rossi Menezes foi convidado a participar de uma comissão da Opas (Organização Pan-Americana da Saúde) para apresentar recomendações e diretrizes para reduzir o sofrimento e o impacto gerado na saúde mental da população dos países do continente.  

“São várias ações que passam pelo enfrentamento do racismo estrutural muito forte no Brasil, que leva a população negra e indígena a sofrer esses transtornos sem ter acesso a tratamento, a desigualdade social, a violência de gênero contra as mulheres, até a conscientização da sociedade no sentido de compreender que os problemas de depressão e ansiedade são iguais a quaisquer outros da área de saúde em geral”, afirma o médico.  

Ele salienta que é preciso que cada vez mais médicos de outras especialidade e clínicos gerais aprendam a fazer o diagnóstico dessas doenças. “É preciso sair do nível de especialistas - psiquiatras e psicólogos - que são relativamente poucos, e integrar a saúde mental na cobertura universal de saúde básica”, afirmou. “Temos possibilidade de usar recursos como a telessaúde, por exemplo, para dar acesso a um grande número de pessoas que vive em áreas onde é mais difícil obter os cuidados necessários.”  

Inovações digitais na área de saúde mental são bem-vindas, afirma o médico. “A pandemia mostrou que é possível ter uma interação usando tecnologia digital entre o terapeuta e o paciente sem a necessidade do encontro presencial”, explicou. “Mas isso só ocorreu com uma pequena parcela da população, estamos estudando como podemos incorporar essa possibilidade no SUS.”   

Um estudo realizado pelo grupo do médico e outras instituições do Brasil e do Peru, publicado no “Journal of the American Medical Association” (Jama), testou um aplicativo em usuários do SUS em São Paulo e dos sistemas de saúde do Peru, em Lima, destinado a reduzir a depressão. “O aplicativo mostrou-se eficaz para reduzir a depressão após três meses do início do tratamento (43,7% dos participantes em São Paulo e 52,7% em Lima), e também teve impacto em outras variáveis, como qualidade de vida, redução da percepção de incapacidades e ativação comportamental", disse.  

Para Rossi Menezes, a pandemia pelo menos serviu para mostrar que a saúde mental deve ser uma das principais prioridades da saúde pública. “A sociedade e especialmente as empresas, que sofrem prejuízos econômicos, parecem ter se dado conta que depressão, ansiedade e outros transtornos mentais são mais comuns do que se imaginava e, portanto, é preciso pensar em ações para modificar esse cenário.” Ele acrescenta que a pandemia não acabou, sendo necessário aproveitar a oportunidade trazida pelos seus ensinamentos para abordar as fraquezas de longa data existentes nos serviços de saúde mental e fortalecer essa área nos próximos anos.

Fonte: Valor (25/11/2022)

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