sexta-feira, 30 de agosto de 2019

INSS: A desinformação no debate sobre aposentadorias especiais



Banalização da concessão do benefício e das atividades ‘especiais’ desfigurou totalmente sua função original

O debate sobre as alterações das regras de aposentadoria especial na PEC 006/2019 tem sido marcado por desinformação e pela falta de compreensão não só das novas regras, como também das particularidades desse benefício.

O Brasil é o único país que ainda aposta no pagamento de adicionais trabalhistas e em benefícios previdenciários para estimular a redução das exposições a atividades insalubres. Esse modelo gera incentivos indevidos para que os ambientes de trabalho não mudem, seja por parte das empresas, seja por parte dos trabalhadores e sindicatos. Possui, ainda, consequências negativas, com a transferências dos custos sociais do trabalho inadequado para a sociedade, via Previdência e Sistema Único de Saúde (SUS).

Artigo patrocinado publicado pelo escritório Gueller e Vidutto no Portal Terra no dia 21 de agosto traz uma série de informações incompletas e erradas a respeito do tema e das alterações propostas pelo texto da reforma da Previdência aprovado na Câmara dos Deputados. O conteúdo afirma que, após a reforma, “passará a ser necessária, além dos 25 anos de exercício de atividade insalubre ou nocivas à saúde, uma somatória do tempo e da idade para atingir determinada pontuação.”

Na verdade, a proposta estabelece, para os novos segurados (aqueles que ainda não ingressaram no mercado de trabalho), a exigência de idade mínima para a aposentadoria: 55 anos para atividades que exijam 15 anos de atividade insalubre; 58 anos para atividades que exijam 20 anos de atividade insalubre; e 60 anos para atividades que exijam 25 anos de atividade insalubre. Não haverá nenhum sistema de pontuação, apenas o tempo mínimo de atividade (e contribuição) e idade mínima.

A regra dos pontos é uma regra de transição para os trabalhadores já filiados ao sistema. E como toda regra de transição, só será utilizada se beneficiar o trabalhador. A nova regra só será aplicada para os atuais segurados se for mais favorável.

Segundo a advogada Marta Gueller, que também divulgou texto similar em seu blog no jornal O Estado de S. Paulo, a tabela progressiva implica em um aumento de 10 anos na vida do trabalhador. Isso não é verdade para todos os casos. Depende de diversos fatores, incluindo a idade do segurado, o tempo de atividade nociva e o tempo de contribuição em atividades comuns.

Cito o exemplo dado na reportagem: 55 anos de idade e 24 anos de trabalho na indústria metalúrgica. Se for presumido que em todo esse período ocorreu exposição a agente agressivo e que não há outro período de contribuição, o trabalhador somaria 79 pontos. Como são necessários 86, a regra de transição não é vantajosa.

Assim, esse trabalhador terá que trabalhar mais 1 ano em condições insalubres e aguardar a idade mínima de 60 anos. Isto é, terá direito ao benefício em 2024, e não 2029, como equivocamente declara o texto. Também não há exigência de permanecer exercendo atividade em ambiente nocivo. Poderá trabalhar em outras áreas após cumprir os 25 anos de atividade nociva.

Esse ponto é relevante: a alteração das regras não aumenta o tempo de exigência de atividade com exposição a agentes nocivos. O tempo permanece como é hoje. Apenas passa a ser exigida idade mínima, evitando aposentadorias extremamente precoces. Hoje, são comuns aposentadorias de trabalhadores com 35 a 45 anos de idade nesta situação. A média de idade dos trabalhadores na data da concessão das aposentadorias especiais é de 49 anos.

Por outro lado, se esse trabalhador tiver outro tempo de contribuição (5 anos em atividade não insalubre, por exemplo), poderia se aposentar em 2021, aos 57 anos de idade. Assim, o tempo adicional de contribuição depende de diversos fatores. Contudo, em nenhuma circunstância, a idade mínima será superior a 60, 58 ou 55 anos, a depender da atividade exercida, desde que cumprido todo o tempo de atividade nociva.

É preciso combater a desinformação e compreender os motivos que justificam reportagens patrocinadas como esta. Qual é o real objetivo de manter a aposentadoria especial como está? Garantir a saúde dos trabalhadores? Ou gerar benefícios de valor elevado para trabalhadores jovens, substituindo as políticas prevencionistas por compensação pecuniária? De qual atividade nociva estamos tratando? Trabalho em condições hiperbáricas, contato com agentes químicos cancerígenos ou lidar com lixo de quartos de hotel?

A combinação adicional e aposentadoria especial gera, ainda, uma judicialização absolutamente desproporcional desse tema, com uma busca constante de caracterizar atividades como insalubres, visando ao pagamento de benefícios e adicionais. É só acompanhar a jurisprudência da Justiça do Trabalho e da Justiça Federal. Todos querem ser especiais, justificando que sua atividade tem a presença de algum agente nocivo: enquadra-se de camareiras de hotel a pessoas que trabalham em postos de combustível. A situação ainda é agravada pela separação artificial feita entre a legislação trabalhista e previdenciária, com o mesmo agente sendo tratado de forma diferenciada a depender do escopo regulatório.

Dentre os diversos assuntos relacionados à aposentadoria especial, está em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF), com repercussão geral (tema 709), a possibilidade de ser mantido o benefício de aposentadoria especial de forma concomitante com o exercício de atividade insalubre. O interessante é que as manifestações favoráveis à continuidade do trabalho nocivo mesmo após a aposentadoria são daqueles que criticam a proposta em discussão no Congresso. É o caso, por exemplo, do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

O IBDP se manifestou sobre tema 709 STF no sentido de que a continuidade do exercício da atividade insalubre após a aposentadoria especial é um direito inalienável do trabalhador. Ou seja: aquele que se aposenta por exercer atividade agressiva tem um “direito inalienável” de continuar exercendo a mesma atividade, devendo apenas ser informado dos riscos.

Curiosamente, o mesmo instituto publicou uma nota técnica sobre a PEC 006/19, destacando que a proposta acabaria com a “lógica” do benefício ao criar uma idade mínima, permitindo a continuidade do trabalho agressivo após o tempo mínimo exigido. A contradição é evidente: após a aposentadoria é legítimo, moral e tecnicamente correto que o tempo de trabalho em ambiente nocivo se dê por período superior ao exigido, tratando-se de direito inalienável do trabalhador; antes não é possível, já que seria expor o trabalhador a risco inaceitável.

A aposentadoria sem idade mínima é algo praticamente inexistente no mundo, salvo em alguns poucos países. O mesmo acontece com a aposentadoria especial. A grande maioria dos países em que existe o benefício adota idade mínima (Ex: Argentina, Bélgica, Alemanha, Espanha, França, Noruega, Polônia e Bulgária) ou tempo mínimo de contribuição muito superior ao previsto no Brasil (38 anos, no caso da Finlândia).

Além disso, a grande maioria dos países limita a aposentadoria especial a poucas atividades, normalmente com altos níveis de acidentes como a pesca e a mineração. Não há paralelo de um sistema tão aberto, sem idade mínima, com benefício com valor superior aos demais e sem contrapartida diferenciada do trabalhador como o Brasil. Somos realmente um ponto fora da curva também nesse tema.

A aposentadoria especial não é ferramenta adequada de prevenção. A banalização da concessão do benefício e das atividades consideradas “especiais” desfigurou totalmente sua função original. Não tem se mostrado instrumento eficaz para proteger os trabalhadores, gera uma enorme insegurança jurídica para as empresas, dificuldade de comprovação e fiscalização, além de custos significativos para o sistema previdenciário.

A única forma correta de evitar adoecimento e acidentes é modernizar a legislação trabalhista e previdenciária, voltada a garantir e estabelecer uma cultura de prevenção, com modificação dos ambientes laborais e investimento em pesquisa e tecnologia voltadas para efetivar o direito ao trabalho em condições adequadas. É o que o mundo todo já faz há décadas. E é o que o Brasil deve fazer se quiser proteger seus trabalhadores: reduzir gastos com benefícios previdenciários e tratamentos de saúde, garantir um ambiente adequado para empreender e aumentar sua produtividade por meio de trabalhadores mais saudáveis.

Fonte: Jota (29/08/2019)

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