Feliz Dia do Aposentado a todos leitores!
A Previdência deve representar um buraco de R$ 265,6 bilhões no orçamento federal, de acordo com a projeção do governo para 2023. O orçamento atualizado para a área neste ano é de R$ 945,32 bilhões
A terça-feira (24) marca o centenário da Previdência Social brasileira. Mesmo aos 100 anos, trata-se ainda de um sistema tão jovem quanto a nossa democracia. E depois desse um século, a Previdência Social ainda pode ter dois significados bem distintos por aqui: segurança ou ônus. A forma que se enxerga o sistema de seguridade social no nosso país diz muito sobre a posição que um indivíduo ocupa nessa sociedade. A Previdência é, por isso, objeto de discussões acaloradas nos âmbitos social, político e de mercado. Então o que o Brasil tem a comemorar hoje?
Por um lado, a Previdência é uma instituição de proteção da cidadania e garantidora da renda para mais de 37 milhões de brasileiros atualmente que, por algum motivo, estão afastados do trabalho. Está no tripé da Seguridade Social, instituído na Constituição de 1988, que também abraça os direitos à saúde e à assistência social e representou um avanço em bem-estar social no país. Não só a aposentadoria, como o direito de licença por motivos de saúde e até o auxílio emergencial existem graças a esse sistema.
Por outro lado, a Previdência deve representar um buraco de R$ 265,6 bilhões no orçamento federal, de acordo com a projeção do governo para 2023. O orçamento atualizado para a área neste ano é de R$ 945,32 bilhões. Todo o recurso, vale dizer, vem das contribuições de empregados do setor privado, trabalhadores rurais e empresas, que compõem o Regime Geral da Previdência Social (RGPS), mais as de servidores públicos, pertencentes ao Regime Próprio da Previdência Social (RPPS).
Esses números superlativos no déficit, que aumentam ano após ano, motivaram reformas na Previdência - já foram sete nos últimos 35 anos. O governo sustenta que a relação do déficit com o Produto Interno Bruto (PIB) vem caindo desde a última reforma, uma proposta apresentada pelo governo de Michel Temer em 2016 e que entrou em vigor só em 2019. Segundo as previsões da Câmara dos Deputados, o déficit deve sair de 3,79% do PIB em 2020 para 2,49% em 2023.
O tamanho do buraco importa porque o "cheque especial" da Previdência é a União. A lei de custeio determina que o Estado use o dinheiro do Tesouro para bancar o que falta à área, pois o acesso a esses benefícios é um direito constitucional e, portanto, deve ser garantido a todo cidadão.
Mas os malabarismos das últimas reformas não serão suficientes, garante Wagner Balera, professor titular na Faculdade de Direito da PUC-SP e doutor em direito previdenciário. Para ele, uma série de fatores técnicos jamais endereçados - além do cenário de envelhecimento populacional e queda das taxas de natalidade - faz com que as contas da Previdência não fechem:
- A Previdência abraça dois mundos diferentes ao incluir RGPS e RPPS num mesmo sistema. Ao jogar empregados do sistema privado e servidores públicos no mesmo "balaio", fica mais difícil entender o problema em sua essência e identificar os pontos que desequilibram a equação;
- No regime geral, nunca foi demonstrada uma conta atuarial provando que a contribuição desse segmento não é suficiente para cobrir os benefícios do próprio segmento, fala-se apenas no saldo. Com esses dados, seria possível discutir mudanças mais eficientes na Previdência;
- A Previdência paga a conta da Assistência Social, uma categoria distinta e totalmente diferente como fenômeno jurídico, porque não pressupõe a contribuição do beneficiário. "O que se faz hoje é jogar para o déficit uma conta que não é de Previdência. Não há questionamentos sobre a necessidade ou a justiça social da assistência, mas da falta de discussão sobre sua fonte de custeio", diz Balera;
- A manutenção da desoneração da folha de pagamentos com base em contribuições sociais reduz a receita previdenciária. Na prática, os governos acabam permitindo que as empresas - um dos agentes que devem contribuir ao regime geral (RGPS) - deixem de reter recursos do caixa da seguridade social num sistema já deficitário, o que só ajuda a aumentar o rombo.
Pela manutenção desse cenário, o especialista é cético sobre alcançar o equilíbrio das contas na Previdência, como vem sendo almejado pelas reformas. "A nossa Previdência ainda está em movimento de reforma, o que significa que a que tivemos em 2019 não foi última nem é definitiva", afirma o professor da PUC-SP.
Previdência social em números
O número total de contribuintes do regime geral da previdência no Brasil ultrapassava 51,5 milhões de pessoas em 2020, segundo o Anuário Estatístico da Previdência Social. Esses contribuintes, que incluem trabalhadores e empresas em zonas urbanas e rurais, arrecadaram R$ 726,474 bilhões para a previdência básica no ano passado, o que representa 88% de todo o gasto executado na Previdência, segundo dados da Controladoria Geral da União (CGU) publicados no Portal da Transparência.
A Previdência arca ainda com os benefícios rurais anteriores a 1991, que até então não tinham fonte de custeio pelo trabalhador. Antes desse período, a aposentadoria do trabalhador rural se categorizava como um benefício assistencial. "O INSS ainda paga, mensalmente, aproximadamente 3 milhões de benefícios rurais anteriores à primeira reforma com o caixa da previdência urbana. A questão, mais uma vez, não é a existência dessa assistência, mas o fato de haver uma deformidade técnica não endereçada dentro desse regime", diz Balera.
Outra questão, segundo o professor da PUC-SP, é misturar os dois regimes (geral e próprio), quer dizer, a contribuição de empregados do setor privado e servidores públicos nessa equação.
A reestruturação do regime de servidores públicos foi adiada por duas vezes, segundo Balera, nas reformas de 1998 e de 2003. Isso causa uma distorção entre o valor de arrecadação e o valor pago em cada regime, especialmente se considerar a inclusão dos grupos militar, de congressistas e do poder judiciário, com salários mais altos.
Para os profissionais que iniciaram em cargos públicos até fevereiro de 2013, o atual teto da aposentadoria é de R$ 44.047,88, valor que corresponde ao máximo pago aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e, assim, ao teto remuneratório do funcionalismo público.
O valor é quase 5,9 vezes o valor do teto do INSS, que está em R$ 7.507,49 atualmente, considerando o salário-mínimo de R$ 1.302 em 2023. Mas os servidores que ingressaram depois de fevereiro de 2013 podem se aposentar acima desse valor limite no INSS se contribuírem com uma previdência complementar.
"A proposta de isonomia é um tema que deve voltar para a mesa, porque não há Estado que sustente essa estrutura. É preciso considerar que não existe previsão de um incremento de receita num país como o Brasil, onde a capacidade contributiva do cidadão está esgotada", defende o especialista em direito previdenciário.
De fato, a remuneração média no regime geral para a aposentadoria foi de R$ 1.661,40 por mês, e de R$ 1.211,07 em assistência social. Já remuneração média de segurados militares ficou em R$ 9.249,58, de acordo com os dados do Ministério do Trabalho e Previdência, 5,5 vezes o benefício do regime geral. Existem cerca de 310 mil militares inativos no Brasil atualmente, ante 32,3 milhões beneficiários do regime geral até novembro passado.
Os pensionistas do regime de seguridade militar, por sua vez, cerca de 163 mil pessoas, recebem em média R$ 5.148,87 por mês. As médias de benefícios militares não incluem as rendas no Estado de São Paulo, que não divulgou números.
Entre os servidores públicos civis, o que inclui congressistas e magistrados, a renda média dos quase 2,62 milhões de aposentados ficou em R$ 2.762,13 por mês em 2022, enquanto os mais de 620 mil pensionistas receberam, em média, R$ 1.992,35 por mês.
Os 485,6 mil militares na ativa no Brasil arrecadaram em torno de 20% das despesas que a Previdência teve com a categoria até julho do ano passado (último dado disponível), enquanto os 4,5 milhões de servidores públicos civis ativos contribuíram com o equivalente a 62% de todas as despesas da instituição com trabalhadores afastados e pensionistas da classe.
Em 2021, o déficit da Previdência em cada classe ficou em mais de R$ 38 bilhões com os militares e em em pouco mais de R$ 83 bilhões com servidores públicos civis. Ainda que o governo ainda não tenha divulgado os números de 2022, esses dados ajudam a construir o quebra-cabeças das contas na Seguridade Social.
Superávit ou déficit?
Ao contrário de tudo que se falou até aqui, desde 2019, a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip) rebate o argumento de que a Previdência é deficitária. A entidade alega que o governo utiliza premissas verdadeiras com conclusões falsas para justificar a reforma. O raciocínio é que a conta que produziria o déficit na área compararia o valor arrecadado com as contribuições sociais ao INSS – pagas tanto pela classe trabalhadora como empresarial – com todo o gasto com a Previdência Social. Assim, para cobrir gastos que não são propriamente da área, a Previdência ficaria deficitária.
Desde a aprovação da Constituição até 2015, dados oficiais anualmente segregados pela Anfip teriam indicado superávit de recursos na seguridade, de acordo com a entidade. A sobra de recursos foi de R$ 55,7 bilhões em 2014 e R$11,7 bilhões em 2015, segundo os últimos cálculos da associação.
Balera não é tão seguro sobre esse cenário superavitário, mas admite que o argumento faz sentido do ponto de vista teórico. "A Previdência paga uma conta que não é dela. Não estou discutindo a justiça social da assistência, e sim sua fonte de custeio", diz.
Outro ponto levantado por especialistas é o impacto das desonerações concedidas desde 1995. “A desoneração da folha de pagamento teve uma média de renúncias de R$ 15 bilhões por ano desde que foi implementada”, enumerou Cesar Roxo, vice-presidente da Anfip, em reunião com o governo para discutir a reforma.
No acumulado de 2022, a renúncia da contribuição dos tributos recolhidos pelas empresas na folha de salários representou uma abdicação de R$ 9,203 bilhões às contas da Previdência, segundo dados da Receita Federal.
"Os programas de parcelamento também são outra grande benesse que o Estado dá às empresas, que em vez de pagar a contribuição previdenciária à vista, pagam em longo prazo. Isso é uma perturbação de caixa, uma vez que a Previdência depende do recurso entrar na época certa", diz o doutor em direito previdenciário.
Considerando que as empresas são um dos agentes de contribuição do INSS, o que o governo faz ao implementar essas política é assegurar um "financiamento para o contribuinte [a empresa] com o dinheiro do sistema de seguridade social", diz Balera.
Mas essa discussão no campo civil tende a levar a lugar nenhum, porque as contas feitas na Proposta de Emenda Constitucional da última reforma da Previdência, apresentada em 2016, nunca foram mostradas de forma confiável e clara, segundo o professor da PUC-SP. "Se fossem abertos esses cálculos, teríamos mais clareza do que realmente está acontecendo, supondo que realmente haja uma sobra na Previdência e que a Assistência é que traga um déficit para a conta."
Brasil: passado aposentado e futuro na previdência privada
O direito à previdência pública foi criado em 1883, na Alemanha. Portanto, chegou ao Brasil, de forma bem rudimentar, só 40 anos depois. Realisticamente, o país estabeleceu um Sistema de Segurança Social que é um tripé importantíssimo para o avanço do direito, mas chegou atrasado ao século do Estado do bem-estar social, como ficou conhecido o século 20. Enquanto a nação estabelecia seu modelo de Estado, ele já estava sendo revisto mundo afora. "E precisaremos fazer o mesmo agora aqui", alerta Balera.
Há 40 anos já se detectou a evolução das sociedades em termos de longevidade, algo que não estava no radar quando o sistema previdenciário foi pensado no século 19. Quando a primeira lei geral de previdência (a Lei Orgânica) foi editada no país, em 1960, a expectativa de vida média do brasileiro era de 62 anos. Tida como um modelo de Previdência mais similar ao atual, a medida é bem posterior à Lei Eloy Chaves, publicada em 24 de janeiro de 1923, que realmente consolidou a base do sistema previdenciário brasileiro, com a criação da Caixa de Aposentadorias e Pensões.
Hoje, a expectativa de vida no Brasil é de 77 anos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). "São 15 anos a mais na conta da Previdência, por isso é tão necessário um recálculo atuarial", defende o advogado.
Para as gerações economicamente ativas e quem está entrando no mercado, a aposentadoria como a que conhecemos até agora, de completo afastamento do trabalho, talvez jamais se torne uma realidade. O discurso, na verdade, é bem familiar a quem tem menos de 40 anos.
A consequência tem sido o aumento da procura por planos de previdência privada entre os trabalhadores com salários mais altos. O segmento de previdência privada captou R$ 140,7 bilhões no acumulado de janeiro até novembro de 2022, alta de 12,2% em relação ao mesmo período de 2021, segundo a Federação Nacional de Previdência Privada e Vida (Fenaprevi).
Mas o mercado ainda é incipiente perto do potencial do país. Um dos motivos é a barreira cultural, já que o brasileiro tem um perfil poupador e, quando investe, raramente é voltado para a aposentadoria.
Para o professor de direito previdenciário, também falta transparência aos planos de previdência privada para que esses produtos cresçam no mercado brasileiro. "É importante que o consumidor tenha acesso a informações de como as contas funcionam, que tenha um extrato claro do investimento e uma projeção de quanto vai receber no futuro, algo fundamental para a esse segmento", defende.
Mas há mais sinais de novos ventos soprando no mercado. O último veio com o lançamento do primeiro produto do Tesouro, no fim do ano passado, focado na aposentadoria dos investidores.
A lógica da previdência, como ela foi engendrada no século 19, pressupunha que a população cresceria para sempre, em progressão geométrica, então a geração presente sustentaria a geração pretérita, e a geração futura sustentará a geração presente.
Por isso o modelo pende hoje por um fio, e a tendência é de se esfacelar gradualmente, como já vem acontecendo, com o envelhecimento populacional, aumento dos custos de serviços de saúde e de seguros e uma população jovem cada vez menor.
Há muitas propostas em mesa. Alguns especialistas defendem que a Previdência garanta uma renda básica, de 2 a 3 salários mínimos, e que o trabalhador tenha uma poupança para complementar sua aposentadoria com outra fonte de renda. Sobre o quanto isso afetaria a população mais pobre, o professor da PUC-SP lembra que os mais de 40 milhões de "desassistidos" no país hoje já não estão na malha de contribuintes do sistema previdenciário, e sim no sistema da Assistência Social, para o qual a discussão se voltaria sobre a fonte de custeio.
"O cenário é melancólico nesse centenário da Previdência Social", conclui Balera, que teme o risco de o Brasil perder, mais uma vez, a janela de oportunidade para se adequar aos novos tempos.
Fonte: Valor Investe (24/01/2023)
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