terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Comportamento: O impacto de falar do próprio câncer da pessoa nas redes sociais



Psicólogos especializados em oncologia alertam para os riscos da exposição pública: o paciente pode perder o controle e os doentes podem ficar frustrados com as histórias

A história do câncer saiu das consultas e da privacidade dos lares. Nas redes sociais, pacientes em tratamento falam sobre suas experiências com a doença, comentam seu dia a dia e compartilham experiências com outros pacientes. A doença é verbalizada e há histórias pessoais que arrastam milhares de seguidores e apoios. A conta no Instagram de Elena Huelva , uma jovem de 20 anos que contava sua vida com o sarcoma de Ewing (tumor raro que atinge os ossos), alcançou um milhão de seguidores e sua morte, em 3 de janeiro, transformou seu lema (“Meu desejo vence”) em um dos temas mais comentados no Twitter com mensagens de apoio e carinho para a jovem e sua família.

As redes sociais de Hilda Siverio, com câncer de mama desde 2014, também tem mais de 300 mil seguidores, embora sua família tenha visto a cara mais amarga das redes nestas semanas e tenha denunciado casos de ameaças e assédio contra Hilda. Especialistas destacam o benefício de tornar a doença visível, mas também alertam para os riscos de contar o câncer nas redes: o paciente pode perder o controle de sua exposição pública e outros telespectadores doentes podem ficar frustrados com a história de quem seguem.

Sara Cervelló não é de contar sua vida nas redes sociais. Quando posta algo, é para compartilhar pesquisas sobre o câncer e divulgar sua participação em mesas redondas com especialistas para dar sua voz como paciente com câncer. Ela tem 40 anos e aos 37 foi diagnosticada um tumor de mama com metástases ósseas.

— Cada paciente lida com a doença como sabe, como pode ou como quer. Uso as redes para divulgar pesquisas, mas não preciso expor meu dia a dia e gerar conteúdo — explica.

Ela também segue algumas contas de pacientes, não muitas:

— Eu sigo algumas, mas não ativamente porque não quero abrir o Instagram e ver pacientes contando seu dia-a-dia com câncer porque eu já tenho o meu — admite.

Ela fica, porém, com o positivo que a história de outros pacientes traz: tornar visível uma realidade que ela compartilha.

— É mostrada a dura realidade, que o câncer de mama não é rosa, por exemplo. E quando vejo relatos assim, sinto que não estou sozinha. É importante mostrar o lado humano, que não somos apenas um número — defende.

Mas acredita também que essa exposição tem seus riscos, como se sentir obrigada a contar o que não quer contar por pressão externa:

— Isso não é Netflix, um episódio toda semana. Essa pessoa tem que poder decidir o que fala, quando fala e se deve deixar de falar.

A voz sobre o câncer foi levantada por um longo tempo. Além dos casos de famosos que anunciaram a descoberta de seus tumores, há também anúncios como de Angelina Jolie de que ela havia se submetido a uma dupla mastectomia como medida preventiva devido ao alto risco de câncer. Isso ajudou a "tornar visível uma realidade que existe", pontua Sonia Pernas, oncologista do Instituto Catalão de Oncologia (ICO). Com a ascensão das redes sociais, este locutor evoluiu e pacientes anônimos — como Huelva, Siverio ou o jovem Charlie, um tiktoker, que também morreu no verão passado de sarcoma de Ewing — tomaram a palavra para contar não apenas o diagnóstico, mas também sua vida com a doença.

Desmistifique o câncer

Os especialistas consultados comemoram o impacto positivo das postagens sobre câncer nas redes e da visibilidade da doença. Pode servir, diz Pernas, para “desmistificar” a doença.

— Dar visibilidade a tudo isso é bom e pode ajudar outros pacientes a desmistificarem na hora de ver o dia a dia. Mas deve ficar claro que a experiência de cada pessoa é diferente. Cada paciente é um mundo. Existem muitos tipos de tumor e cada pessoa responde de uma forma diferente — alerta.

Paco Gil, responsável pelo setor de Psico-oncologia do ICO, garante que a utilização das redes sociais é “um recurso que as pessoas apreciam”:

— O importante da rede social é a atitude com que se encara a doença. As pessoas se sentem validadas. Mas é importante que haja verdade, que também não se gere uma falsa ilusão.

Não existem dois doentes iguais e a forma como lidam com a doença é diversa, insistem os especialistas: para alguns pode fazer bem contar sua rotina de tratamento ao mundo e a outros, o contrário.

Não existe uma forma única de conviver com o câncer e nenhuma é errada ou incorreta, adverte Tania Estapé, presidente da Associação Espanhola de Psico-oncologia:

— Quem faz, desabafa, sente companhia, precisa dela para se exteriorizar. Mas, quem está mais exposto não é necessariamente aquele que está lidando melhor ou que está psicologicamente mais adaptado à doença. Às vezes, as pessoas se expõem para acalmar a ansiedade.

A 'armadilha' do positivismo

Em uma de suas últimas postagens no Instagram, internada no hospital, Hilda Siverio simula cantar uma música com a filha sob um texto que diz: “Seguimos com a esperança de lutar com alegria”. O sentimento de luta e positividade, apontam os especialistas, "pode ​​ser bom" para muitos pacientes, mas Estapé alerta, por outro lado, para "a armadilha do pensamento positivo" e a frustração dos seguidores doentes que não alcançam a atitude do paciente que conta sua vida nas redes:

— Eles podem sentir que se não são positivos, estão errados. Mas é lógico neste processo passar mal. Você tem que lembrar que, nas redes, você vê o que o outro quer que você veja — ressalta o psico-oncologista.

Os especialistas apontam que no câncer “há um componente sociológico que acompanha as gerações” e as redes, aponta Estapé, “estão envolvidas no dia a dia”. Acima de tudo, no dos mais jovens. Mas lembra que é preciso deixar espaço para que cada paciente carregue a doença como quiser:

— Parece que é obrigatório explicar, que se você não contar, não aceita a doença. Mas cada um tem que fazer o que lhe faz bem — diz Estapé.

Cervelló, por exemplo, admite que demorou um ano para tornar pública sua doença:

— Não é minha coisa gerar conteúdo. O tempo que tenho é muito limitado e prefiro dedicar meus esforços a outras coisas. Ver que os outros o carregam com mais força ou resiliência não significa que você o carrega mal. Para mim, por exemplo, o câncer não tem nada de positivo e não me ensinou nada.

Outra questão delicada, segundo os especialistas consultados, é o impacto que a morte de um paciente deixa nos seguidores.

— No grupo de mulheres do qual participo, essa notícia chega a todas nós e a gente compartilha e discute. Têm um impacto negativo a nível pessoal e do grupo de doentes. Depende muito de como você administra a vida, a doença e a morte — explica Cervelló.

Estapé admite que, após a morte de um paciente que contou sua vida nas redes, vê-se “uma cascata de pacientes deprimidos ou assustados” e saber da morte de uma pessoa famosa, acrescenta, é “um gatilho para o medo de uma recaída, aquela sensação de que faças o que fizeres, as coisas não vão correr bem". Paco Gil concorda que, em sua opinião, a morte de um conhecido não implica em um impacto psicológico permanente, mas desencadeia um episódio de "emocionalidade" e alguns pacientes, por exemplo, choram na consulta e expressam suas emoções.

Ameaças e boatos

Sonia Pernas defende, de qualquer forma, a “responsabilidade” ao compartilhar conteúdo sobre câncer nas redes sociais. Responsabilidade com a informação que é divulgada e com a exposição que se faz de si.

— Aconselho, se for feito, o que é bom, ter o apoio do oncologista que te trata para estar ciente do impacto negativo e positivo que isso pode ter.

A médica lembra que todas as informações divulgadas devem ser verídicas e embasadas cientificamente .

— Os pacientes estão mais informados e empoderados, mas tome cuidado onde você obtém suas informações para não criar falsas expectativas ou dizer coisas que não são verdadeiras — adverte.

Os boatos na saúde continuam fervilhando nas redes e a população acometida por um tumor são pessoas vulneráveis. Cervelló insiste na "importância de divulgar a informação com responsabilidade".

— Há muitos de nós que estão assistindo, a situação é muito dramática e você está segurando um fósforo em chamas. A facilidade com que as pessoas recomendam coisas sem respaldo científico é brutal — lamenta.

Não se cura sendo positivo ou boa pessoa, acrescenta Estapé:

— Existe uma influência nociva. Os pacientes chegam e falam: "É que me falaram que se eu não for positivo, não vou ficar curado". Mas não há nenhuma evidência disso. É verdade que pessoas com leve tendência depressiva tendem a se cuidar menos, se soltar e fazer menos visitas de controle, mas é uma associação muito leve — pontua e dá outro exemplo: — Lembro-me muito do caso da cantora espanhola Rocío Jurado, das mensagens na televisão que diziam que, como ela era forte, boa e corajosa, ficaria curada. Mas é preciso ter cuidado com essas palavras porque no câncer sempre há uma parte do acaso: há pessoas fortes, boas e corajosas que não se curam.

Assim como aconteceu no caso de Hilda, o outro grande risco de exposição nas redes é o assédio que os pacientes podem sofrer. Ou suas famílias. No caso dela, a filha denunciou "ameaças", "falta de respeito" e cobranças de seguidores que exigiam saber o estado de saúde de sua mãe. Na época, quando ponderava sobre o uso que faria de sua doença nas redes, Cervelló já pesava esses riscos:

— E eu me perguntava: de que isso vai te adiantar? Vai compensar tudo isso? O risco é você não ter o controle e acabarem te obrigando a fazer ou falar algo que você não quer. Não preciso expor meu dia a dia e gerar conteúdo.

Fonte: El País (30/01/2023)

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