Será o fim dos seguros saúde? A celeuma do “reembolso assistido”
Não se pode admitir o sacrifício dos consumidores em razão da inabilidade das seguradoras em diferenciar a fraude do serviço corretamente prestado e probo do reembolso nos termos contratuais dos seguros saúde.
Muito se tem discutido a respeito da possibilidade legal do chamado “reembolso auxiliado” ou “reembolso sem desembolso” e as opiniões são diametralmente opostas. Diversos operadores do direito debatem sobre a questão, mas pouco se fala a respeito das prováveis consequências da proibição ou mesmo da normatização equivocada dessa conduta.
A ANS, agência reguladora da saúde suplementar no Brasil, até o momento prefere manter o silêncio e receber uma verdadeira enxurrada de “reclamações”, as chamadas Notificações de Intermediação Preliminar, possivelmente aguardando o desenrolar político da questão.
O presente artigo não tem qualquer pretensão de esgotar o tema ou mesmo propor uma solução simplista à tão complexa questão, mas tão somente elucidar as possíveis implicações a longo prazo de uma possível (mas não provável) exclusão da prática comercial.
Regulamentação jurídica do reembolso
Não obstante o reembolso seja amplamente utilizado nos seguros saúde (e em hipóteses restritas nos planos de saúde), fato é que ainda carece de regulamentação. Isso porque muito embora a RN 268/11 da ANS, disponha, em seu art. 9º, § 1º que “Para todos os produtos que prevejam a opção de acesso a livre escolha de prestadores, o reembolso será efetuado nos limites do estabelecido contratualmente”, não temos normas específicas a respeito.
É certo que ao optar pela modalidade livre escolha, o pagamento do serviço será através de reembolso e esse valor será calculado de acordo com as regras estabelecidas no contrato entre seguradora e segurado.
Mas qual a documentação poderá ser exigida do segurado para fins de pagamento do reembolso? O burocrático e complicado processo administrativo de solicitação junto à seguradora pode ser auxiliado por terceiros? Quando e por que o reembolso será negado? É preciso efetivamente desembolsar a integralidade do tratamento médico para que seja devido o reembolso ou basta a comprovação da efetiva despesa?
Muitas são as questões que afligem o segurado e dão azo ao questionamento inicial: será o fim dos seguros saúde?
A pergunta tem uma forte razão de se propagar no cenário nacional atual. Ora, quem de nós dispõe de R$50.000,00, R$ 80.000,00 ou R$ 100.000,00 para custear à vista um procedimento cirúrgico? Creio eu que uma parcela restrita da população.
Sendo assim, se precisamos efetivamente desembolsar esse valor para conseguir o acesso ao tratamento no local e com o profissional escolhido (modalidade livre escolha) a vantagem do seguro é reduzida drasticamente.
Indubitavelmente faria muito mais sentido demonstrar a ocorrência da despesa para a concretização do direito ao reembolso. Obviamente que este seria pago nos limites contratuais e, então o segurado pagaria ao prestador do serviço apenas a diferença, a qual desde a contratação, ele aceitou suportar.
Infelizmente não é o que vem ocorrendo no uso dos seguros no Brasil. As seguradoras vêm se valendo de recente decisão exarada pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Recurso Especial nº 1.959.929-SP, a qual, ressalte-se, tem aplicabilidade exclusiva às partes daquela ação, sem efeitos erga omnes e pende, ainda, de julgamento de embargos declaratórios.
Naquele julgado, data máxima vênia, a nossa instância máxima em âmbito infraconstitucional deixou de aplicar axioma jurídico decorrente do princípio da legalidade, segundo o qual, ao particular é lícito praticar tudo aquilo que a lei não proíbe expressamente.
Segundo o eminente relator, Ministro Marco Aurélio Bellizze, “em caso envolvendo o seguro DPVAT, em que se discutiu se era possível a cessão de direitos ao reembolso das despesas médico-hospitalares, realizada por vítimas de acidente automobilístico em favor de clínica particular – não conveniada ao SUS – que prestou atendimento aos segurados, esta Terceira Turma, por unanimidade, decidiu não ser possível a cessão do direito ao reembolso, sem que houvesse o prévio desembolso dos valores pelo segurado.”
Ocorre que a cessão de direitos ao reembolso no caso do DPVAT é matéria de ordem pública e encontra expressa proibição legal, o que não ocorre no caso do seguro saúde, entre segurado e seguradora. Esta última relação é privada e não possui qualquer vedação quanto à possibilidade da cessão de seus créditos. Assim, retornando ao axioma brilhantemente aventado pelo professor Osvaldo Simonelli1, ao particular é lícito praticar tudo aquilo que a lei não proíbe.
E, fazendo uma pertinente correlação com o entendimento da Diretoria de Fiscalização da própria ANS, em seu DIFIS nº 08 de 21 de fevereiro de 2017, o reembolso é devido uma vez comprovada a DESPESA e não o efetivo DESEMBOLSO (senão, por que optaríamos, como consumidores, pelo seguro saúde?).
A DIFIS demonstra a necessidade da existência de uma DESPESA contraída pelo segurado, mas obviamente, não exige o desembolso, sob pena de macular o próprio sistema do seguro saúde.
Inegável ocorrência de fraudes
De fato, é inegável a ocorrência de fraudes quando tratamos da modalidade livre escolha. Existem notícias de notas fiscais frias, serviços superfaturados e até mesmo solicitações de reembolso de serviços jamais prestados. Mas os fins deveras justificam os meios? Devem os bons pagarem pelos maus? Ou melhor, deve o consumidor pagar pelos fraudadores?
Evidentemente que não!
A fraude deve ser combatida e sobre isso não existe qualquer questionamento. O que não se pode admitir é o sacrifício dos consumidores em razão da inabilidade das seguradoras em diferenciar a fraude do serviço corretamente prestado e probo do reembolso nos termos do contrato.
Como muito bem aludido pela advogada Juliana Hasse, “a partir do momento que há uma alteração repentina de uma prática já consolidada no mercado, há um prejuízo severo aos consumidores pois, enfrentando dificuldades para exercerem a livre escolha, experimentarão insatisfação; precisando realizar serviços de alto custo, terão dificuldade de receber o reembolso e correrão o risco de nem mesmo receber; desejando mudar de plano ou seguro diante dessas dificuldades, enfrentarão um processo burocrático que, ainda, poderá obrigá-los a se submeter a prazos carenciais.”
É o mesmo que, por analogia, retirar do correntista a opção de se utilizar do PIX haja vista os inúmeros golpes recentemente noticiados, ou mesmo extinguir os cartões de crédito. Ora, trabalhe a instituição financeira que tanto lucra com os serviços prestados para que consiga coibir as fraudes de forma a proporcionar a satisfação dos consumidores. Em última análise, todos ganham com o bom funcionamento do sistema.
Uma vez comprovada a despesa do segurado, não há que se exigir seu prévio desembolso, pois estaríamos pondo fim ao próprio seguro saúde. O direito do segurado ao reembolso já existe a partir da despesa, ainda que dependa do cálculo do coeficiente de reembolso nos termos contratuais.
Um bom funcionamento desse sistema somente traz benefícios tanto ao consumidor, quando à seguradora e ao prestador de serviços. Sem a sua correta aplicação estaremos fadados ao fim do seguro saúde? É a pergunta que não quer calar. Talvez seja o momento da ANS reafirmar seu entendimento, do Judiciário corrigir sua interpretação, dos segurados agirem com lisura e, acima de tudo, das seguradoras compreenderem que o bom funcionamento de toda essa engrenagem beneficia, acima de tudo, elas próprias.
Fonte: Correio Popular (06/04/2023)
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