Estudo analisou a jurisprudência de 1ª e 2ª instâncias do TJSP
O setor da saúde suplementar possui cerca de 50 milhões de usuários e o gasto assistencial do setor em 2021 somou R$ 207 bilhões, significativamente maior que o orçamento do Ministério da Saúde no mesmo ano. Trata-se de um setor grande também em complexidade.
Planos de saúde são mecanismos de compartilhamento de risco e proteção financeira que estão sujeitos a diversas falhas de mercado (assimetria de informação, moral hazard e seleção adversa). É também uma área de constantes conflitos que decorrem da dificuldade de se equilibrar, de um lado, as expectativas de usuários por mais e melhores serviços a um preço acessível e, de outro, a sustentabilidade econômica das operadoras frente à crescente inflação em saúde.
A complexidade e conflituosidade do setor levou à criação de uma lei específica (Lei 9.656/98) e da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Porém, muito frequentemente, as normas do setor e os procedimentos da ANS não impedem que surjam conflitos entre usuários e as operadoras de seus planos de saúde, o que têm levado à judicialização da saúde suplementar.
Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontam que, em 2021, houve 142 mil novas ações relativas ao setor suplementar, contra 243 mil relativas à saúde pública. A maior litigiosidade na saúde suplementar em termos proporcionais fica evidente ao considerarmos que toda a população tem direito de utilizar o SUS, mas apenas 25% dela possui plano de saúde.
Portanto, para entender a saúde suplementar é fundamental entender que tipo de demanda chega ao Judiciário e como as ações são julgadas. Com esse objetivo, publicamos o estudo “A judicialização da saúde suplementar: uma análise empírica da jurisprudência de 1ª e 2ª instâncias do Tribunal de Justiça de São Paulo”. O objetivo foi coletar todas as decisões (liminares, sentenças, agravos e apelações) envolvendo planos de saúde de 2018 a 2021. Com auxílio computacional, identificamos 205 mil decisões e classificamos esses documentos de acordo com o assunto. Percebemos que 90% das decisões tratavam sobre três temas: negativa de cobertura de tratamentos, reajuste de mensalidade e manutenção dos contratos de plano de saúde.
Gráfico 1: Universo de decisões e classificação por cluster temático por ano de julgamento
*”Cobertura” refere-se aos casos no eixo “Negativa de cobertura assistencial”, “reajuste” àqueles no eixo “Reajuste de mensalidade”, e “contrato” àqueles no eixo “Manutenção do contrato”
**O quantitativo de liminares de 1ª instância não representa o total de liminares proferidas no ano, mas as liminares encontradas em processos em que já houve sentença. Portanto, o número de liminares está provavelmente subestimado
Conforme indica o Gráfico 1, a maior parte das ações contra planos de saúde é motivada pela negativa de cobertura assistencial por parte do plano. Na 2ª instância, o número de decisões em ações relativas à cobertura tem crescido, o que contrasta com as decisões em outros temas, que tem se mantido estável ou mesmo reduzido.
Para análises detalhadas das decisões, tiramos uma amostra estatisticamente representativa por tema e por instância. Em matéria de negativa de cobertura assistencial, os itens mais pedidos nas ações são medicamentos e cirurgias. As enfermidades mais comuns são tumores malignos e transtornos mentais e comportamentais. Dentre as alegações mais frequentes das operadoras para negar cobertura estão a ausência do tratamento no rol de procedimentos da ANS ou no contrato, a realização do tratamento fora da rede de cobertura do plano, ou que o paciente está no período de carência ou cobertura parcial temporária.
A taxa de sucesso dos pacientes em ações relativas à negativa de cobertura tende a ser muito alta, atingindo 80% em ambos os graus de jurisdição. Porém, há grande variação conforme o tipo de pedido e a alegação da operadora. Por exemplo, pacientes ganham 90% dos casos em que a operadora justifica a negativa de cobertura pela ausência do tratamento pedido no rol da ANS. Isso reflete o entendimento predominante no TJSP de que o rol é meramente exemplificativo. Esse número se mantém mesmo quando se trata de tratamento sem registro na Anvisa ou para uso off label. Por outro lado, quando o paciente pede atendimento fora da rede de cobertura, a taxa de sucesso das demandas nos tribunais cai significativamente.
Nas ações que questionam reajuste de mensalidade, a taxa de vitória dos usuários é significativamente menor – 41% na 1ª e 53% na 2ª instância –, embora a probabilidade de sucesso aumente em sentença e apelação (49% e 59%, respectivamente). Nas decisões em que o reajuste da operadora é revisto pelo Judiciário, o argumento mais comum é o de que o reajuste é genérico, obscuro ou não justificado. Isto é, a discussão não gira em torno das normas que tratam sobre o reajuste, mas sobre o cálculo deste.
Quando a ação versa sobre reajuste por sinistralidade, notamos uma grande diferença entre 1ª e 2ª instâncias. A taxa de sucesso dos usuários vai de 37% nas sentenças e sobre para 61% nas apelações. O mesmo não se vê nos casos de reajuste por mudança de faixa etária.
Os casos de manutenção de contrato envolvem principalmente pedidos de ex-funcionários para a manutenção de seus planos de saúde nas mesmas condições de preço e reajuste de quando estavam empregados ou dos planos dos atuais funcionários de suas ex-empresas. Aqui também se nota uma diferença entre a 1ª instância (taxa de sucesso do usuário de 53%) e a 2ª instância (taxa de sucesso de 37%).
No tema de manutenção do contrato estão também ações relativas a cancelamento do plano pelo inadimplemento do consumidor. Nesses casos a discussão gira em torno da validade da notificação enviada pelas operadoras aos usuários informando sobre a iminência do cancelamento e a taxa de sucesso do usuário é de 60% na 1ª instância e 94% na 2ª instância.
Espera-se que os resultados da pesquisa enriqueçam nosso entendimento sobre a judicialização contra a saúde suplementar e qualifiquem as discussões para melhorar a regulação do setor e diminuir sua conflitualidade.
Fonte: Jota (13/02/2023)
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