sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Aposentadoria: Como construir uma nova carreira depois da aposentadoria



O mercado de trabalho para o aposentado 

Com o envelhecimento recorde da população na última década e idosos cada vez mais ativos, o mercado de trabalho se prepara para lidar com um novo tipo de trabalhador: o aposentado, que permanece na ativa. De acordo com os dados do censo de 2022, pelo menos 10,9% da população brasileira já tem mais de 65 anos, um crescimento de 57,4% em 12 anos, e com uma expectativa de vida média beirando os 75 anos.

Mas a população tem envelhecido bem, inclusive querendo dar continuidade à rotina de trabalho, mesmo depois do direito à aposentadoria. Os dados, agora defasados, mostram que a realidade já era essa em 2015, último dado disponibilizado sobre o assunto pelo IBGE. De acordo com o Instituto, à época, pelo menos 5 milhões de aposentados (5.517.253) afirmaram estar em algum tipo de atividade de trabalho ao responder a PNAD daquele ano. A realidade atualizada dos dados deve ser divulgada com o novo censo.

Moysés Araújo, de 57 anos, economista e formado em administração de empresas, ilustra essa realidade. Depois de se aposentar, e após uma vida inteira como diretor da empresa de sua família, se viu mudando de carreira aos 55 anos, quando a empresa onde trabalhava encerrou atividades. Na época, o estudo e determinação foram fundamentais para dar continuidade à sua carreira.

Em junho de 2021 ele se aposentou, mas não chegou a ficar parado. “Não tive essa questão de voltar à ativa, mas sim de recolocação por mudança de perfil, porque eu sempre trabalhei em uma empresa familiar”, detalha.

Depois de 30 anos, com mudanças de mercado no setor em que a empresa familiar atuava, em agosto de 2019, as atividades comerciais da companhia foram encerradas. “Nesse momento, eu fui para o mercado tentar uma recolocação. Essa transição foi realmente grande e exigiu muitas mudanças devido até mesmo à minha idade e à mudança de atuação em gestão para uma nova colocação. Próximo de me aposentar, foi preciso uma adequação de minha parte, e aí realmente houve um período de dificuldades até eu conseguir me reinserir”, conta Araújo.

Com mais de 50 anos de idade e um currículo que trazia apenas uma experiência de trabalho, Araújo enfrentou desafios, a começar pelo etarismo e o excesso de conhecimento para cada vaga que concorria. Foi quando conheceu a Talento Sênior e recebeu uma convocação para um processo seletivo. "Era uma vaga de financeiro para operar um sistema de gestão que conhecia bem. Fui contratado pela empresa Stoyan Energia, especializada em energia solar fotovoltaica, ajustei minha carreira e usei meus conhecimentos para atuar onde o cliente precisa”, diz.

A transição, porém, só foi possível graças ao aprendizado contínuo. Araújo focou em estudar novas formas de trabalho, incluindo entender como trabalhar como pessoa jurídica. Para ele, não valia a pena um contrato CLT, já que vestava aposentado. O que impactou o profissional foi a grande adequação do perfil, que era de empreendedor e gestor, para prestador de serviço.

Renato Bernhoeft, colunista do Valore fundador da Hoft Consultoria, explica que esse é um dos maiores desafios na recolocação profissional de executivos que se aposentam. “A dificuldade das maioria dos executivos é que empreender não é algo que eles aprendem”. O especialista pontua que é preciso se reeducar para atuar em uma área diferente: “se ele começar o preparo antes, treinamentos para repensar a carreira, habilidades e em que ela pode ser útil, [a recolocação] dá certo, mas é um esforço individual”.

Por isso, o consultor de diversidade etária e integração geracional Mauro Wainstock explica que a reinvenção da carreira deve acontecer ao longo da jornada, e não somente após a aposentadoria. Ele diz ainda que o tripé educação, emprego e “liberdade pós-aposentadoria”, tão comum no passado e formatado em blocos estáveis e delimitados, está obsoleto e que, para termos um envelhecimento saudável, também será necessário financiar os 30 anos a mais de vida que teremos com a crescente longevidade.

Bernhoeft lembra que a volta aos escritórios acontece pelo bem-estar do profissional, que, no período de ócio da aposentadoria, pode ser afetado por problemas como depressão e autoestima baixa. “O que ocorre com boa parte, principalmente se a gente fala de executivos de média e alta gerência, é que eles estão acostumados com alguns aspectos que o mercado lhes fornece, por exemplo, um sobrenome corporativo que agrega valor, conhecido como 'fulano de tal empresa'. Quando ele sai, no outro dia não é ‘nada’”, diz.

Papel das empresas

Com este novo panorama, as empresas passaram a lidar com o pós-carreira, criando programas que funcionam como uma preparação de executivos para o período. O processo é iniciado antes da entrada na previdência, pensando em alternativas para o executivo como, por exemplo, tornar-se um conselheiro, empreendendo em uma nova atividade ou buscando um trabalho também na área social.

Segundo Juliana Ramalho, CEO da Talento Sênior, que atua na contratação de profissionais 45+ sob demanda, a área de recolocação não precisa ser, necessariamente, a mesma que o profissional atuou antes da aposentadoria. Ela afirma que áreas que não existiam há alguns anos, como diversidade, ESG, ética e compliance, por exemplo, precisam usar conhecimento de profissionais que foram de RH, negócios e operações, exemplifica.

O que priorizar

Para os especialistas, algumas características devem ser avaliadas e aprimoradas pelo profissional, como o autoconhecimento, as soft skills, o aprendizado contínuo, além do uso de ferramentas digitais e presença relevante no LinkedIn. Além disso, o aposentado que deseja se recolocar precisa estar antenado nas profissões que estão surgindo e as que estão desaparecendo com as novas tecnologias.

Ramalho explica que, em um mundo com a abertura a novas tecnologias e novas indústrias e serviços que surgem, não é possível - nem para os jovens, nem para os mais maduros - se fechar na possibilidade apenas da vocação, ignorando as mudanças no cenário do mercado. Também é necessário verificar a facilidade de aprendizagem em determinadas áreas para evitar um estresse angustiante da pessoa que sai demais da sua zona de conforto e não consegue usar nada das atividades que desenvolveu por anos. “As atividades requerem múltiplos conhecimentos e mais habilidades para ocupar diversas posições. Ainda mais em startups e empresas ágeis que não têm cargos hierárquicos muito definidos”, destaca.

Com o aumento da expectativa de vida, aos 60, é possível ter talvez mais 30 anos de vida produtiva, diz Ramalho, sendo possível até fazer uma nova universidade. “Carreiras complementares podem ser extremamente úteis, como por exemplo, um economista que faz direito, um jornalista que faz marketing, um psicólogo que faz técnico em recursos humanos, ou um engenheiro que faz administração”, pontua.

Não deixe para depois

Protelar o momento de pensar em uma nova carreira é um risco, de acordo com Wainstock. O consultor afirma que não é necessário esperar sair da empresa ou finalizar a carreira para colocar em prática outros projetos.

“Se o profissional sempre pensou em ensinar, pode dar aulas em comunidades carentes. Se ele quer transmitir o que absorveu ao longo de sua trajetória profissional, faça mentoria para jovens aprendizes. Se ele quer experimentar ser palestrante, procure associações da sua área e disponibilize horários da sua agenda para participar de lives e eventos. Se ele quer prestar consultoria, cadastre-se em plataformas especializadas. Se ele atua com vendas, que tal criar um e-commerce? Esses trabalhos podem não necessariamente gerar uma remuneração imediata, mas são indispensáveis por várias questões”, diz.

Para o consultor, tais trabalhos acrescentam ao profissional à medida que:

  • Podem validar, na prática, as reais habilidades para exercer a nova função;
  • Avaliam o impacto de quem recebeu o serviço, e com isso o profissional pode aperfeiçoar determinadas características exigidas nessas atuações;
  • Aprofundam o networking, interagindo com profissionais que são referência no segmento;
  • Fortalecem a marca profissional diante de outros públicos;
  • Geram novos insights sobre outras oportunidades até então não vislumbradas.

Outro benefício de se antecipar é poder fazer outras funções, em paralelo, sem abrir mão do salário e dos benefícios da CLT.

Onde estão as oportunidades no pós-carreira

Os especialistas dizem que a continuidade na carreira pode ser feita dentro da empresa que o funcionário já agregava valor, aproveitando o profissional em novas iniciativas e, assim, se beneficiando do conhecimento, da experiência e do fato de a pessoa conhecer a organização.

“Faz sentido a aposentadoria compulsória de um profissional que, ao apagar a velinha de seu aniversário de 60 anos, precisa obrigatoriamente sair do cargo – independente dos resultados que está apresentando?”, indaga o consultor.

Para quem voltou à ativa, como é o caso de Araújo, não. Ele ainda estava trabalhando quando se aposentou e, para ele, parar nunca foi uma opção. “Eu solicitei a aposentadoria devido ao tempo de contribuição, mas nunca me passou pela cabeça não estar ativo. Até por causa de me sentir ainda bem, sinto a necessidade do trabalho. Hoje, nos atuais moldes da aposentadoria, os rendimentos são, muitas vezes, insuficientes. Você não consegue se aposentar com o mesmo rendimento que você tem na sua vida profissional. Então, a minha opção sempre foi continuar trabalhando”, diz.

A incorporação de novos modelos, permitidos na legislação trabalhista, também deve ser considerada. Como o "talent as a service", que propicia ao profissional maior autonomia, o gerenciamento do próprio tempo, podendo atender a diversos clientes, e a capacidade de ter a sua experiência valorizada e a remuneração ampliada.

Wainstock pontua que as empresas ainda precisam avançar e abrir perspectivas para novos modelos de trabalho, observando que o profissional de hoje, independente da idade, hierarquia e segmento de atuação, deseja autonomia e flexibilidade. Um exemplo é a multinacional de publicidade Dentsu, sediada em Tóquio, que criou um programa em que o funcionário se aposenta oficialmente e inicia seu próprio negócio enquanto a empresa fornece uma renda garantida durante 10 anos para que ele possa viabilizar seu projeto solo.

“Além do financiamento, a empresa pode prover capacitação, seja para ajudar os profissionais a se tornarem empreendedores mais qualificados, seja para que eles se aprofundem no ecossistema de startups”, sugere.

Múltiplas gerações

Para a contratação de pessoas aposentadas que desejam retomar a carreira ou criar uma nova, é necessário uma preparação de todos os integrantes da empresa para acolher o funcionário. “A inclusão real aprofunda o senso de pertencimento, permite a retenção maior dos colaboradores e traz uma dinâmica única de criatividade e adaptabilidade”, afirma Wainstock.

Esse bem-estar já é, inclusive, tema de pesquisas. Levantamentos apontam que empresas que valorizam e promovem a convivência harmoniosa entre trabalhadores de variadas idades alcançam resultados financeiros significativamente melhores em comparação com aquelas que não investem nesse quesito.

Voz da experiência

Gilberto Rodrigues, que tem 65 anos, está na RB serviços, empresa que faz gestão de benefícios trabalhistas, há oito anos. Começou como gerente de relacionamento e hoje, depois da aposentadoria, atua no departamento jurídico. O profissional se aposentou em junho do ano passado e optou por continuar trabalhando para agregar um “aporte financeiro”, já que somente a aposentadoria não daria conta de manter tudo.

Gisele Zacharias, gerente de RH da companhia, explica que manter um funcionário recém-aposentado pode trazer vantagens significativas para a empresa. “Optamos em manter o contrato do colaborador por inúmeros fatores que agregam a equipe, pela experiência que ele possui por já conhecer a empresa, pela disciplina e responsabilidade que ele tem na execução de seu trabalho e pela lealdade à empresa ao longo dos anos”, explica.

Em 2003, Rodrigues se formou em direito, mas nunca exerceu a advocacia. Agora, atuando no jurídico da empresa, está empenhado em estudar para a prova da OAB e se sente jovem. “Apesar de estar aposentado, ele sempre está em busca de conhecimento, o que tem resultado na assertividade de suas entregas e no alcance dos objetivos esperados pela sua liderança”, conta Zacharias.

Para Ramalho, "as empresas devem apostar nos profissionais mais velhos, pois eles podem agregar habilidades que as corporações necessitam, como experiência em conflitos e em relações humanas, com menos foco na própria carreira e mais foco em relações e resultados para empresa ou produto".

Além disso, ela observa que, entre os profissionais sêniores, existem competências que podem ser vantajosas para as empresas, como o fato de possuirem conhecimento especializado, podendo servir como mentores para as gerações mais novas.

Com uma possível aprovação na OAB, Rodrigues cogita em migrar de carreira novamente: "eu ainda tenho pretensão de trabalhar como advogado júnior um dia. Quem sabe? Isso só depende de mim”.

Fonte: Valor (24/01/2024)


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