segunda-feira, 17 de julho de 2023

Sucessão Patrimonial: Herança digital pode valer muito dinheiro, mas quem pode faturar com as redes sociais de pessoas que morreram?

  


Brasil tem 15 projetos de lei sobre a questão: o primeiro é de 2022, mas nenhum deles foi votado no Congresso 

Celebridades como Gal Costa, Gloria Maria, Paulo Gustavo e muitos outros continuam com perfis ativos no Instagram, com seguidores engajados, comentando cada foto ou música postada. Com frequência, a conta continua sendo trabalhada pela mesma equipe de antes da morte dos artistas, adaptada agora ao novo momento. Um perfil com milhões de seguidores e forte engajamento vale dinheiro, pode ser deixado em testamento e já existe empresa especializada em fazer a avaliação patrimonial dessas contas.  

A herança digital pode afetar também os nada famosos. Quando morremos, ficam para trás nossas contas de e-mail, mensagens de texto, perfis nas mídias sociais, conversas no WhatsApp, história das buscas feitas e nosso comportamento como consumidores. Decidir o destino do eu digital talvez seja um dos grandes imperativos éticos e tecnológicos do nosso tempo. Quem tem o direito a acessar essas contas? A quem pertence a nossa memória e nossa imagem?   

A escritora e desembargadora Andréa Pachá começou a ficar intrigada com essa questão quando lembrou da frase de Nelson Rodrigues de que se as pessoas conhecessem as intimidades umas das outras, ninguém mais se cumprimentaria.  

“A gente está vivendo uma experiência muito próxima disso. Hoje a vida das pessoas é devassada por autoexposição - elas exibem a parte da vida que querem mostrar - e, quando morremos, temos mensagens arquivadas para sempre, não temos direito ao esquecimento das nossas vivências e da nossa memória”, diz. 

As marcas digitais deixadas ao longo da vida podem ser uma alegria ou um trauma quando acessamos as contas depois da morte de pessoas queridas. Uma revisita a esses artefatos digitais é capaz de nos mostrar detalhes e momentos que poderiam ter se perdido, nos fazer descobrir um e-mail revelador do carinho e amor que inspiramos no passado ou rever fotos inusitadas no Instagram. Nos dias dos aniversários, com frequência, amigos voltam ao Facebook para homenagear o querido ou contar histórias vividas juntos.  

Mas também pode destampar a memória esquecida de 40 anos atrás, nunca antes revelada porque iria ferir os mais próximos ou fazer estragos nas relações interpessoais. É de alguma maneira a reedição digital da cena clássica de roteiros de filmes, em que a família descobre um maço de cartas no baú da mãe ou da avó com revelações sobre o passado delas.  

É, por exemplo, a história do longa “As Pontes de Madison” (1995), de Clint Eastwood, em que os filhos adultos, ao escavar a memória da mãe recém-falecida, encontram a correspondência dela com o grande amor da vida: um relacionamento do passado, vivido intensamente em quatro dias e mantido por cartas até a morte do amante.  

“É diferente do que acontece agora. Carta tem data, tem a ação do tempo, está amarelada. Quando chega às redes sociais, tudo aparece para você como se tivesse acontecido ontem. Não é o inconsciente que te remete ao passado, é a foto do Facebook que eles presumem ser bom você rever agora. São os justiçamentos na rede, sem revisão da História, por coisas que aconteceram há 30 anos”, comenta Pachá.  

A advogada Cintia Burille, criadora da Pericial Digital, uma das primeiras agências de sucessão digital e de avaliação de perfis de influencers, tem a mesma opinião: as mudanças tecnológicas só tornaram mais grave a invasão da privacidade dos mortos.  

“Quando se achavam cartas no baú não se trocavam nudes, não se trocavam intimidades cada vez mais íntimas e mais frequentes na internet. Estamos falando de outro tempo, não dá para comparar. Era uma violação ler as cartas da avó e é muito mais agora”, diz.  

Algumas famílias recorrem à Justiça pedindo para entrar nas contas de pessoas queridas já mortas e outras querem fechá-las porque se transformaram num vale de lágrimas e isso lhes faz mal. As sentenças são contraditórias umas com as outras, porque o direito não está conseguindo acompanhar a velocidade das mudanças tecnológicas e sociais.  

O Brasil tem 15 projetos de lei sobre herança digital. O primeiro é de 2022, mas nenhum deles foi votado no Congresso. A maioria é muito genérica e limita-se a propor que os herdeiros do patrimônio físico tenham também acesso às contas nas plataformas digitais. Os advogados consideram que são projetos muito rasos, incapazes de dar conta da complexidade do assunto.  

Uma das grandes discussões no momento é se, com a morte do titular, herda-se só bens digitais patrimoniais - como criptomoedas, milhas aéreas e perfis monetizáveis - ou se garante também o acesso às redes sociais, aos históricos de mensagens no WhatsApp, e-mails, todas as situações atreladas à personalidade do usuário e sem valor econômico - direitos da personalidade, neste caso, são aqueles elencados nos artigos 11 e 12 da Constituição referentes ao nome, à imagem, à honra e à privacidade do indivíduo.   

Para Burille, a transmissão universal seria uma violação de direitos fundamentais. “Direitos personalíssimos, em regra, morrem com o titular. Há exceções, pode-se fazer um testamento no qual escolhe-se um herdeiro para administrar o perfil ou o usuário pode até passar para o herdeiro a decisão sobre o assunto.”  

A Alemanha e a Espanha foram os primeiros países a regulamentar a herança digital. Ambas deram aos herdeiros o direito de acesso às contas dos mortos e mesmo às conversas com seus interlocutores. O argumento é que, ao mandar uma carta, não está subentendido um único destinatário a ler o texto e, portanto, aplica-se o mesmo princípio nas redes: cancela-se o sigilo de toda a correspondência digital.  

A Alemanha foi levada a regulamentar o assunto a partir do caso de uma família cuja filha de 15 anos morreu atropelada por um trem que entrava na estação de metrô. Os pais, ao pedirem o acesso ao Facebook da adolescente, alegaram dois motivos: queriam acabar ou confirmar a suspeita de tratar-se de um suicídio e defender-se no processo por perdas e danos aberto pelo motorneiro do metrô contra eles por perdas e danos.  

A Corte deu ganho de causa aos pais, concedendo-lhes acesso a todas as contas da adolescente. O Facebook recorreu, ganhou, e logo depois perdeu quando os pais entraram com novo recurso. A decisão judicial foi reafirmada num processo semelhante contra a Apple.  

Na Espanha, a lei de proteção de dados e garantia de direitos digitais estabeleceu as mesmas regras da decisão judicial da Alemanha e entrou em vigor em dezembro de 2018.  

A Meta, dona do Facebook e do Instagram, recusou-se a dar entrevista sobre o assunto; apenas mandou as políticas adotadas pelas duas plataformas. As regras são semelhantes: com a apresentação do atestado de óbito, ambas aceitam pedidos de parentes para fechar as contas dos que já morreram ou para transformá-las num memorial, prometendo cuidado para não violar a privacidade do titular nem compartilhar login - não explicita, porém, que a memória é construída com base nos algoritmos. Com um selo de “Remembering” ao lado da foto do perfil, a homenagem pode permanecer na plataforma o tempo desejado pela família. No Facebook, o herdeiro designado pode usar as contas, aceitar novos amigos e interagir com a rede.   

“Quando a gente está trabalhando com um assunto muito novo, a prevenção é o melhor caminho”, diz Burille. Há dois anos, ao fazer um testamento, a advogada sempre inclui os bens digitais no seu checklist de perguntas aos clientes: como vai transformar suas redes sociais? Quer excluí-las ou mantê-las? Alguém será encarregado de administrar o perfil? Tem milhas aéreas ou criptoativos? Quer indicar onde a pessoa pode achar a chave das moedas digitais?  

As criptomoedas já não são mais problema, agora que são regulamentadas pelo Banco Central. O fundamental é ter acesso à chave de acesso para não repetir a história do romeno Mircea Popescu, que foi nadar na Costa Rica, afogou-se e levou consigo a chave para o equivalente a R$ 11 bilhões em moedas digitais. A jurisprudência sobre a transmissão de milhas aéreas tem variado: já foi validada a penhora desses pontos para pagar uma dívida e, ano passado, o STF julgou que só seriam hereditárias as milhas compradas, não as conseguidas gratuitamente.  

“Eu continuo defendendo que é patrimônio e arrolo nos testamentos”, diz Burille. Mesmo sem uma legislação sobre transmissão de bens digitais, existe um enunciado importante do Conselho de Justiça Federal para orientar a transmissão desse tipo de herança.  

Segundo o entendimento da nona jornada de direitos civis, as últimas vontades sobre a atuação na internet podem ser determinadas em testamento ou por coticílio - uma forma mais simples para expressar os últimos desejos, em que basta escrevê-los num papel em branco, datar e assinar. Neste quesito pode entrar o pedido para ser enterrado com o celular - como um advogado fez para o seu cliente -, também usado para dispor sobre a herança digital de influencers e artistas.  

“O perfil de pessoas mortas continua a ser usado nas redes, a ser formador de opinião, continua turbinando publicidade e gerando lucro para a família e para as big techs. Por causa dos milhões de seguidores, a rede é administrada por terceiros e monetizada”, enfatiza Pachá.   

Aconteceu com o sertanejo Gabriel Diniz, após sua morte em 2019, aos 28 anos. Seu irmão fez um inventário extrajudicial para assumir o seu perfil e o mantém ativo até hoje. Durante a pandemia, por exemplo, promoveu lives com outras duplas na conta de Gabriel, aproveitando a rede dos fãs de sertanejo já conquistados.  

“Como é muito difícil construir uma rede social do zero, uma cantora pode buscar o perfil de uma pessoa já falecida para ver se não teria interesse em vendê-lo. Ganharia um público qualificado que já seguia a artista porque gostava do estilo de música dela. Você compra como se fosse um ponto comercial”, recomenda Burille.  

O Brasil tem 10,5 milhões de influenciadores, o segundo maior número de pessoas com mais de 10 mil seguidores nas redes. Apesar disso, ainda não é fácil calcular o valor do perfil de celebridades nas redes.  

Um exemplo disso é o inventário da cantora Marília Mendonça, morta num acidente de avião em 5 de novembro de 2021: até agora não acabou, corre em segredo de Justiça e, segundo advogados, provoca discussões sobre o valor da sua rede com 40 milhões de seguidores no Instagram e dezenas de milhões no YouTube.  

Para alegria dos seus fãs ardorosos, as músicas de autoria da cantora continuam sendo postadas, mas este é mais um problema para os advogados: como se estabelecem os diretos autorais digitais? Presume-se que as regras serão as mesmas usadas no mundo dos livros e discos tangíveis, mas nada foi regulamentado.  

“Há muitos conteúdos profissionais arquivados nas redes. Os filhos terão direito de publicar e cobrar pelos direitos autorais da publicação? Têm direito a essa memória que é garantida a uma empresa, mas não à família? Não desejo que fiquem à disposição do dono do Facebook ou Instagram para lucrarem com isso”, diz Pachá.   

Foi por conta das muitas dúvidas em torno de herança digital que a advogada Burille abriu uma consultoria com Helena Marques Dias, especializada em marketing. “Quando há dificuldades de avaliar um imóvel, a gente chama um corretor, se for cotas de empresa, chama um contador, no caso dessas redes monetizáveis, não tinha a quem recorrer”, diz Burille.  

Desde 2019, ela trabalha com sucessão de bens digitais e, para fazer uma avaliação, leva em conta o número de seguidores, o engajamento, o alcance da publicação, a retenção, a questão da legalização, dados geográficos. Um exemplo? Um influencer a procurou ao entrar com um processo de divórcio. Ele tinha 1 milhão de seguidores no Instagram, a rede fora criada depois do casamento e, portanto, precisaria entrar na partilha de bens. Ela avaliou em R$ 50 mil e o cliente concordou.  

“A gente ainda está engatinhando nesse processo”, diz. Desde que a internet centralizou a comunicação, o lazer e o trabalho na nossa vida cotidiana, a quantidade de informações criada diariamente nas redes cresce sem parar. Em 2022, James Potter, autor de “Alfabetização midiática”, calculou que a cada minuto são feitas 3,8 milhões de buscas no Google, são mandados 188 milhões de e-mails e 1,4 milhão entra no Tinder.  

Carl Öhman, doutor em ética da Universidade de Oxford, num estudo do ano passado, intitulado “Os mortos vão tomar controle do Facebook? O futuro da morte online”, estimou que aumenta em 19 mil por dia o número de perfis de pessoas já falecidas no Facebook e, se a plataforma ainda existir e continuar aumentando nos mesmos níveis de 2018, serão 4,9 bilhões de mortos até o fim do século, superando o número de vivos com contas na plataforma. “Isto cria uma grande mudança sociológica”, escreve ele.  

Uma extensa literatura acadêmica sobre o fenômeno do pós-morte digital já existe e muitos defendem que esse conjunto de informações constitui um patrimônio arqueológico sobre a humanidade e deve ser preservado.   

Seria a memória de uma geração, a primeira capaz de se transformar em fonte primária para os historiadores revisitarem as grandes mudanças culturais - como o Black Lives Matter ou o Me Too -, tendo à disposição os depoimentos dos militantes envolvidos nessa luta.  

Estes perfis, segundo Öhman, estão se transformando numa memória coletiva de nós como espécie. Mas também viraram alvo de uma indústria digital pós-morte, com um crescente uso comercial dessas contas.  

O comercial com Elis Regina é um exemplo. Foi a partir da inteligência artificial que a artista, morta há quatro décadas, reviveu e está cantando “Nossos Pais” ao lado da filha, num comercial da Volkswagen. Dirigindo e cantando em dueto com Maria Rita. Nada ilegal, os filhos cederam os direitos de imagem da mãe, mas a polêmica se instalou. Na segunda dia 10, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) informou ter aberto processo ético para analisar a campanha.  

Nos Estados Unidos, onde não há lei para garantir o direito à privacidade dos mortos, alguns estados criaram proteção contra o uso na publicidade, por um período de tempo, de pessoas mortas. Na Califórnia, são 70 anos, em Nova York, 40 anos após a morte. Antes disso, só com a autorização da família, mas, por via das dúvidas, pessoas públicas deixam explícita a proibição de serem ressuscitados.  

Sem testamento, para o comum dos mortais, cabe às big techs o controle da imensa quantidade de informação deixada pelos internautas. “Isso cria perigos éticos e políticos. Em ‘1984’, George Orwell já alertava que aqueles que controlam nosso acesso ao passado também controlam nossa percepção do presente”, escreve Öhman.  

Pachá vê outro perigo: a linguagem binária da inteligência artificial contaminando as relações afetivas nas redes, transformando tudo em sim ou não.  

“O direito mudou, as famílias mudaram, houve a inserção de direitos de pluralidade, de diversidade e agora estamos vivendo uma rebordosa: a rede de afetos, as relações de família, os processos de sucessão estão sendo minados pelo avanço dessa linguagem das redes sociais. É uma desumanização: como a gente faz para prevalecer a linguagem racional que nasce no iluminismo e que tem noção da precariedade humana num ambiente em que tudo é sim ou não, certo ou errado”, diz.   

A pergunta sem resposta é se dará tempo de se preparar, do ponto de vista ético e político, para a disseminação da nova tecnologia, a temida inteligência artificial.

Fonte: Valor (14/07/2023)

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