O Senado do Chile aprovou na noite desta quarta-feira uma reforma constitucional que permite o saque de parte dos fundos de pensão do país com o objetivo de mitigar a crise provocada pela pandemia de coronavírus. Proposto pela oposição, o projeto conta com enorme apoio popular, mas foi criticado como tendo pouco fundamento técnico e sendo regressivo em termos fiscais. Sua aprovação abre espaço para a reforma do sistema previdenciário chileno, e aprofunda a crise do governo direitista de Sebastián Piñera, que se opunha à iniciativa.
De acordo com a lei, cidadãos poderão sacar (resgatar) até 10% dos recursos guardados nas Administradoras de Fundo de Pensão (AFP), fundos que guardam as reservas para a aposentadoria dos chilenos, para enfrentar a pandemia. Em alguns casos, para pessoas com reservas mais escassas, o saque poderá chegar a 100%.
A votação do Senado, conduzida por teleconferência e presencialmente, durou mais de oito horas e se segue à aprovação na Câmara dos Deputados na semana passada. O placar foi de 29 votos a favor, 13 contra e 1 abstenção. No começo da sessão, governistas tentaram estabelecer um quórum mínimo de 2/3 dos votos dos senadores para a aprovação do projeto, mas foram derrotados, e definiu-se que 3/5 (26 votos) seriam suficientes. Cinco senadores da coalizão governista Chile Vamos votaram a favor do projeto.
Agora, o projeto volta para a Câmara, que deverá revisá-lo antes de sua promulgação. As leis aprovadas permitem que um máximo de 4,3 milhões de pesos (R$ 28.600) e um mínimo de um milhão de pesos (R$ 6.600) sejam retirados dos fundos de pensão. Quem economizou menos do que o mínimo poderá sacar todo o dinheiro guardado para a aposentadoria.
A iniciativa suscitou críticas de economistas de centro-direita e de centro-esquerda, que consideram haver mecanismos mais eficazes para socorrer os chilenos durante a pandemia, e que ela pode beneficiar justamente quem menos necessita. Não há estudos de impacto sobre a lei.
Quatro em cada cinco chilenos, contudo, são favoráveis à iniciativa, e o resultado já era esperado. A insatisfação com o sistema de pensões do Chile foi uma das principais pautas das enormes manifestações do país no final ano passado, e a oposição entende que a lei é o primeiro passo para a reforma de todo o sistema.
Governo pode vetar ou recorrer
Também contribuiu para o apoio à lei a demora de Piñera para desenvolver políticas de socorro à classe média durante a pandemia. O governo apresentou na semana passada um pacote de apoio a este setor, mas a resposta foi considerada tardia e insuficiente. O presidente tem a aprovação de 22% dos chilenos.
Juan Pablo Letelier, senador do Partido Socialista, disse que o projeto tem tanto apoio porque "o governo não deixou alternativa":
— Este projeto representa a resposta política à ausência de iniciativas efetivas e eficientes para ajudar diretamente a população. O governo deve assumir que chegou tarde, mal e ineficientemente (...) Estamos votando esta reforma constitucional porque as pessoas precisam dessa alternativa — afirmou.
Pressionados pela pressão popular, senadores da base, como José Durana, da pinochetista União Democrática Independente (UDI), justificaram o voto a favor como "um voto do povo".
— O voto que hoje faço é um voto humano, um voto do povo, de ariqueños e parinacotenses — afirmou. — Essa retirada extraordinária é voluntária. Os planos sociais do governo devem ser eficazes e assim o foram, mas devem permitir que os compatriotas escolham.
Em uma intervenção, o ministro da Secretaria Geral da Presidência, Claudio Alvarado, afirmou que o "resultado da votação já está escrito". Ele disse que o governo se opunha à iniciativa porque a lei envolveria questões orçamentárias e despesas fiscais que seriam de atribuição do Executivo. Há a possbilidade de o Executivo vetar a lei ou então recorrer ao Tribunal Constitucional, a mais alta corte chilena, em uma ação sobre a constitucionalidade do dispositivo.
— Como Executivo, não questionamos a iniciativa porque não queremos ajudar as pessoas. Consideramos que o caminho da reforma constitucional não é o caminho, pois ameaça os fundamentos da estrutura institucional e contraria prerrogativas exclusivas do presidente da República — afirmou Alvarado.
O ministro do Interior, Gonzalo Blumel, afirmou que o projeto é uma "desculpa para outros propósitos".
— É para causar derrota política ao governo, enfraquecer a Constituição, pôr fim ao atual sistema de pensões ou buscar unidade forçada na oposição — afirmou.
Sistema da época de Pinochet
Criadas em 1981, durante a ditadura de Augusto Pinochet, como o primeiro sistema de capitalização inteiramente privado do mundo, as AFP agora somam 10,9 milhões de membros.
Em quase 40 anos, os fundos de pensão conseguiram acumular US$ 200 bilhões (R$ 1,02 trilhão), o equivalente a 80% do PIB chileno, tendo sido mais eficazes para impulsionar os mercados de capitais do que para pagar boas pensões. Os recursos possibilitaram dinamismo à classe empresarial chilena, uma das bases de apoio do presidente.
O valor das aposentadorias, no entanto, é considerado baixo, e uma antiga causa de insatisfação entre a população. Em junho, o sistema concedia uma pensão média de 195 mil pesos chilenos (R$ 1.300), quase 40% abaixo do salário mínimo e muito longe da promessa de pagar 100% do último salário até 2020, mesmo nos casos de trabalhadores mais beneficiados, que se aposentam com de 30 a 40% de suas remunerações, percentual inferior ao de países de renda parecida.
Estimativas oficiais colocam entre US$ 17 bilhões e US$ 20 bilhões o máximo que poderia sair do sistema de pensões.
Marco Kremerman, economista da Fundación Sol, avaliou que nenhum grande choque deve acontecer no mercado financeiro se a liquidação de ativos pelas AFPs para atender à demanda das afiliadas for feita de "maneira gradual, coordenada e auditada".
Hoje, 55% dos fundos de pensão são investidos no Chile, principalmente em dívida pública e em instituições bancárias, enquanto 45% estão investidos no exterior.
— O sistema serviu para impulsionar o mercado de capitais, mas não para pagar boas pensões — disse Kremerman.
Quanto ao seu impacto nas pensões, estima-se que possam diminuir entre 5% e 10% do montante mensal após a aplicação desta medida.
Uma análise da empresa de consultoria previdenciária Ciedess, entretanto, afirma que, se o texto jurídico fosse aprovado, quase três milhões de pessoas seriam capazes de retirar todos os seus fundos de pensão, deixando-os com uma economia igual a zero no futuro.
— Não é razoável enfrentar as necessidades urgentes e de curto prazo das pessoas, afetando um sistema de seguridade social cujo propósito responde a uma lógica de economia de longo prazo — disse o gerente geral da Ciedess, Rodrigo Gutiérrez.
Fonte: O Globo (23/07/2020)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
"Este blog não se responsabiliza pelos comentários emitidos pelos leitores, mesmo anônimos, e DESTACAMOS que os IPs de origem dos possíveis comentários OFENSIVOS ficam disponíveis nos servidores do Google/ Blogger para eventuais demandas judiciais ou policiais".