O STJ definiu que o rol de cobertura obrigatório das operadoras de saúde no Brasil é taxativo. Ou seja, a partir de agora convênios médicos estão respaldados a negar o pagamento de terapias não previstas na lista. A decisão coloca os consumidores em situação de medo e insegurança
“Pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são”. Uma das frases mais famosas da literatura brasileira contida no livro Macunaíma, de Mário de Andrade, serve como ponto de reflexão sobre um dos temas problemáticos do País, a saúde de seus cidadãos. Desta vez, o que chama atenção e é motivo de preocupação de mais de oito milhões de pessoas é a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), alterando o rol de cobertura obrigatória das operadoras de saúde. A Corte resolveu que, a partir de agora, a lista que cobre financeiramente procedimentos cirúrgicos, terapias, medicamentos, entre outras atividades ao segurado enfermo é taxativa. Ou seja, os planos de saúde, que antes eram obrigados pela Justiça a pagar a conta em caso de haver a necessidade de o consumidor ter de passar por novos procedimentos, ficam respaldados a negar tratamentos e remédios. Segundo a deliberação, as empresas não precisam mais arcar com os custos de quaisquer tratamentos fora do rol oficial da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), mesmo que haja sentenças nesse sentido.
“O convênio me negou medicamento, exame e imunoterapia. Tive que entrar com processo contra o plano diversas vezes”
Ana Maria Teixeira Eland, 66 anos, paciente em tratamento contra o câncer
Na verdade o que fez o STJ foi jogar um banho de água fria sobre os consumidores, já que o próprio Poder Judiciário havia reconhecido, por meio de diversas decisões, que o rol se tratava de algo exemplificativo, que, dependendo da situação, deveria incluir outros procedimentos. Em resumo, os 3.300 procedimentos, que já constam na lista como despesas obrigatórias para os convênios, se tornam uma camisa de força para quem precisa de alguma nova terapia com rapidez. Pessoas que estão em tratamento podem ter suas terapias sumariamente interrompidas. Dinâmica como é a área da medicina, inovações surgem de forma constante. “A decisão é ruim. Agora, as pessoas vão ter que pagar por fora por tratamentos inovadores”, diz Renata Abalém, especialista em direito do consumidor e integrante da Comissão de Direito do Consumidor da OAB-SP. Ela tem razão. “Atualmente, há adultos diagnosticados com autismo, e com isso, surgem necessidades diferentes”, diz.
O reconhecimento de inovações acontece de fato. As novidades entram sim no rol de cobertura das operadoras de saúde. Ocorre, no entanto, que essa atualização não se dá do dia para noite. Se exige para tal, longuíssimos cento e oitenta dias, e, somente após esse período, é que remédios, tecnologias ou terapias são acolhidos. “Esse é o tempo necessário para que um novo fármaco, por exemplo, seja analisado com o devido rigor científico”, pontua Vera Valente, diretora executiva da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), organização que representa quinze grupos de operadoras e 40% dos beneficiários dos planos de assistência médica. Segundo Vera, a decisão do STJ foi equilibrada porque trás previsibilidade ao setor. “A situação anterior, poderia comprometer o funcionamento de empresas médias e pequenas”, diz ela. Mas seu raciocínio recebe criticas de todos os lados.
“Precisei recorrer para que Manuela fizesse um exame, tivesse acesso ao canabidiol e passasse por cirurgia”
Jéssica Brandão, mãe de Manuela, de 5 anos, que sofre de displasia cortical
“Vai aumentar a quantidade de incursões na Justiça para garantir o que deveria ser um direito”, diz Renata. “Somente nos tribunais conseguimos assegurar o prosseguimento de muitos tratamentos e, consequentemente, evitar mortes”, afirma Columbano Feijó, advogado, especialista em direito de saúde suplementar, e sócio da Falcon, Gail, Feijó & Sluiuzas Advocacia. Quer dizer, se antes da deliberação era difícil as operadoras aceitarem pagar, agora vai ficar pior, pois tribunais de primeira instância certamente serão impactados pelo que definiu o STJ, e, assim, o que antes era julgado de forma favorável ao consumidor, agora poderá ser analisado de maneira contrária. “Uma pessoas que está em tratamento contra o câncer, por exemplo, e precisa de uma cirurgia ou um medicamento novo rapidamente pode não ter tempo de espera e morrer”, explica Columbano Feijó. Ele diz que o paciente passa a ser obrigado a comprovar que o tratamento solicitado pelo médico fora da lista é realmente algo que lhe será benéfico. “Os planos de saúde estão respaldados a negar tudo que estiver fora do rol”, afirma.
Os clientes dos planos de saúde se mostram amedrontados com a situação de insegurança criada a partir de agora. É o caso de Jéssica Brandão, mãe da Manuela, de 5 anos. Desde os dois, a criança tem epilepsia, e chegou a ter trinta episódios de instabilidade diários. “Minha filha me abraçava e dizia que a crise estava chegando”, conta Jéssica. Para ajudar Manuela, Jéssica precisou recorrer à justiça três vezes contra o convênio. Primeiro para fazer um importante exame, o qual definiu o diagnostico, mas que tem o custo de R$ 14 mil. Depois, ela foi aos tribunais para garantir que Manuela tivesse acesso ao canabidiol, remédio que reduziu as crises a dez casos por dia. A menina tem que tomar dois frascos por mês, mas devido ao preço, o tratamento seria descontinuado, já que cada unidade custa R$ 2.500. O terceiro momento que precisou processar o plano de saúde foi quando o recebeu o diagnostico: displasia cortical. “Com uma liminar conseguimos que ela fosse operada”, afirma. Hoje, a epilepsia desapareceu, mas a criança ainda precisa de algumas medicações, inclusive o canabidiol. “É uma fase de desmame, tenho medo que o plano deixe de fornecer”, diz.
“Quando me olhava no espelho sentia nojo. Essa situação me afeta socialmente”
Patricia Grunheidt, de 48 anos, passou uma cirurgia bariátrica e aguarda algumas reparações
O pavor de não conseguir manter o tratamento é um sentimento compartilhado por muitas pessoas. A diretora de marketing Patricia Grunheidt, de 48 anos, também está nessa luta. Ela se submeteu a uma cirurgia bariátrica em 2013, quando pesava 130 quilos. Reduziu o peso para 64 quilos e, como todas as pessoas nessa condição, precisou passar por manobras cirúrgicas para reparação de sobras de pele. Já esteve na sala cirúrgica em três ocasiões, pois todo o seu corpo precisou de reparos. Mas somente conseguiu que o plano pagasse pelos procedimentos com uma liminar nas mãos “Quando me olhava no espelho sentia nojo. Essa situação me afeta socialmente”, afirma. O convenio médico se dispôs a pagar por parte dos procedimentos, mas não pelo total. Ela diz que tem medo de não poder dar continuidade ao tratamento. “Justamente agora que só preciso cuidar dos braços”, conta.
Outra amostra de como o rol de cobertura taxativo é prejudicial aos consumidores, até em situações que a pessoas está acamada há necessidade de recorrer à justiça. É o que conta Ana Maria Teixeira Eland de 66 anos. Ela luta contra um câncer de ovário que se tornou metastático e também com sua assistência médica. O convenio lhe negou medicamento, exame e imunoterapia. “Tive que entrar com processo contra o plano diversas vezes”, conta. Uma das drogas que lhe mantém viva, ingerindo dois comprimidos por dia, tem o preço de R$ 25 mil. “O rol taxativo representa uma incerteza a mais”, disse.
A deliberação do STJ ocorreu na quarta-feira, 8, e teve seis votos a favor do rol taxativo, incluído o do relator, ministro Luis Felipe Salomão. Acontece, no entanto, que decisão tomada com tamanha tranquilidade pelos magistrados representa, agora, enorme preocupação para pessoas que estão em tratamento de saúde complexos. Mais: confirma que Mário de Andrade tinha razão, a condição natural de crescimento do formigueiro e de pouca saúde dos brasileiros vai permanecer. No mundo da política, especialmente no Senado, houve uma reação contraria à decisão do STJ. A senadora Mara Gabrilli, (PSDB), por exemplo, diz que essa é uma discussão antiga no Congresso e afirma de maneira contundente que a definição é ruim a toda a população, especialmente, para pessoas portadoras de deficiência, autistas e gente que tem doenças raras. “Essas pessoas vão ficar desamparadas, o rol taxativo mata”, afirma Mara. Ela conta que está articulando uma reação junto ao também senador Randolfe Rodrigues (Rede Sustentabilidade), que tem um projeto de lei que, se aprovado, muda o cenário e torna a lista exemplificativa. De qualquer forma, nesse jogo político que se desenvolve quem está sempre ameaçado e perde é o consumidor.
Esperança para o câncer no intestino
Um novo fármaco em fase de estudos clínicos foi capaz de eliminar um tipo raro de câncer de cólon em 100% dos pacientes submetidos aos testes. A droga chamada de dostarlimabe foi administrada em doze pessoas a cada três semanas durante seis meses e o acompanhamento foi efetivo por dois anos. O incrível e surpreendente resultado impediu que os voluntários fossem submetidos aos tratamentos convencionais: cirurgia, quimioterapia e radioterapia. Mais, não houve retorno da doença em nenhum paciente. A pesquisa acaba de ser publicada no conceituado periódico de medicina The New England Journal of Medicine. O remédio é um imunoterápico, um tipo de medicamento que recupera a capacidade do sistema imunológico do próprio enfermo para reconhecer, controlar e, mesmo destruir, as células doentes. Além de tratar-se de um tumor de rara mutação, foi a primeira vez que um ensaio do tipo foi feito em casos metastáticos, quando a moléstia se espalha por todo o organismo. Os participantes não tiveram o retorno do tumor. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou em março, a comercialização do dorstarlimabe no Brasil. Mas, por enquanto, não há permissão de uso em casos de câncer de intestino, somente endométrio. A farmacêutica GlaxoSmithKline, fabricante do produto ainda não definiu seu preço.
Fonte: Isto É (16/06/2022)
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