sábado, 5 de novembro de 2022

Inovação: Ciência tenta reaver com novo governo verbas perdidas para pesquisa

  


Corte de recursos em fundo científico atinge setor até 2026

Na imagem acima o acelerador de partículas Sirius, em Campinas, maior estrutura científica do país: projeto de R$ 2 bilhões, um dos mais modernos do mundo, que sofre com falta de verba 

O dia 29 de agosto foi um dia de más notícias para a ciência brasileira. Foi nessa data que o “Diário Oficial” da União publicou uma medida provisória assinada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) que bloqueou recursos do que é considerado o principal fundo de financiamento à inovação do país, o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). As restrições entraram logo em vigor e, pelo texto, durarão até 2026.  

Com a derrota de Bolsonaro nas urnas, no entanto, a expectativa entre acadêmicos e pesquisadores é que o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e sua equipe de transição façam gestões para reverter os efeitos da MP 1.136.  

Cientistas afirmam que manter o FNDCT engessado e limitado pelos próximos quatro anos afetará o andamento de pesquisas e projetos importantes em universidades federais e em outras instituições. Entre eles, estudos sobre doenças emergentes a e sobre os efeitos pós-covid, novas estações de pesquisas na Amazônia e até a maior estrutura científica do Brasil, o projeto Sirius.  

O problema é como fazer caber no projeto de Orçamento já apertado de 2023 as promessas de campanha de Lula e as demandas de vários setores, entre eles o da ciência brasileira.  

O governo justificou a MP como necessária para ajudar na contenção de despesas primárias de forma a evitar o descumprimento do teto de gastos. O Congresso precisa votar texto até o fim de dezembro para que ele ganhe status definitivo de lei. Se isso acontecer, um dos cenários considerados nas discussões da equipe de transição do PT é que um eventual “waiver” (possibilidade de que alguns gastos sejam feitos fora do teto no ano que vem) contemple os desembolsos do FNDCT, sem as restrições da MP.  

Assinada por Bolsonaro, pelo ministro da Economia, Paulo Guedes e pelo ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Paulo César Alvim, a MP estabelece que este ano o fundo poderá dispor de R$ 5,5 bilhões. Antes do corte, as dotações do fundo giravam em torno de R$ 9 bilhões. Metade desse valor seria para empréstimo a empresas que investem em inovação. Mas as condições fazem com que esses recursos não sejam muito demandados pelo setor privado.  

A outra metade vai para universidades e outras instituições que fazem ciência. É esse setor que mais demanda o FNDCT e para o qual a MP deixou em 2022 cerca de R$ 2,7 bilhões e bloqueou R$ 1,75 bilhão. Em 2023, R$ 4,2 bilhões estarão bloqueados, 42% do fundo. Em 2024, o bloqueio será de 32%; em 2025, de 22%; e em 2026, 12%. Só em 2027, o fundo voltaria a poder ser empregado totalmente.   

O Valor ouviu nos últimos dias pesquisadores em áreas diversas, que relataram como os bloqueios no FNDCT minam o horizonte da produção científica pelo país.  

No Laboratório de Neurofarmacologia e Comportamento, vinculado à Faculdade de Farmácia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pesquisadores estudam há anos os efeitos no cérebro provocados por infecções virais.  

Coordenada pela neurocientista Cláudia Pinto Figueiredo, a equipe de cerca de 35 profissionais, mergulhou há alguns anos em pesquisas sobre memória de pacientes que contraíram o vírus da zika. O trabalho rendeu artigos nas revistas científicas “Nature” e “Science”. Com a pandemia, as pesquisas avançaram também para memória e o pós-covid-19. Mas a limitação do FNDCT coloca agora um ponto de interrogação na capacidade do laboratório de manter seus estudos, equipamentos, insumos e um biotério aparelhado para abrigar centenas de camundongos usados nos testes.  

“A gente tem perguntas nas nossas pesquisas e estávamos preparados para respondê-las, mas quando vem um corte como esse a gente não pode usar todas as ferramentas necessárias para encontrar as respostas”, disse Cláudia.  

Na Universidade Federal do Pernambuco (UFPE), o corte desorganiza a gestão de laboratórios. A UFPE tem dez laboratórios multiusuários que comportam equipamentos de grande porte e que demandam manutenção preventiva anualmente. Com os bloqueios, afirma o pró-reitor de Pesquisa e Inovação da UFPE, Pedro Carelli, os recém-criados laboratórios NB3 para pesquisa sobre doenças emergentes e reemergentes foram atingidos diretamente. Os NB3 abrigam agentes biológicos com elevado risco para os pesquisadores. Segundo Carelli, a falta de recursos para compra de insumos e reagentes impede a continuidade das pesquisas.  

Na Amazônia, a nova etapa do projeto Sistema Amazônico de Laboratórios Satélites (Salas), foi anunciada em junho. O planejado então era ter R$ 80 milhões, recursos do FNDCT. O plano inclui a construção de 50 bases de pesquisa na região para pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Mas com a MP 1.136 os planos perderam fôlego.   

Criado em 1969, o FNDCT tem diversas fontes de recursos, entre elas percentuais dos royalties de petróleo e gás, percentual da receita operacional líquida de empresas de energia elétrica e do faturamento bruto de empresas que desenvolvem ou produzem bens e serviços de informática e automação e da arrecadação do Adicional ao Frete para a Renovação da Marinha Mercante.  

Um levantamento recente feito pelo Centro de Estudos Universidade, Sociedade e Ciência da Unifesp (Sou Ciência), em parceria com o Instituto Serrapilheira, mostra um aumento da diferença entre a dotação atual (que é a arrecadação) do FNDCT e o valor liquidado. De acordo com o estudo, em 2010 essa diferença era de 32,8%. Em 2021, a disparidade chegou a 90%.  

Nos últimos 12 anos, a diferença entre os valores pagos e arrecadados pelo FNDCT foi de R$ 44 bilhões, em valores atualizados, segundo o levantamento.  

Segundo a professora da Unifesp Soraya Soubhi Smaili, coordenadora do Sou Ciência, números mostram que, principalmente entre 2019 e 2022, recursos para as 68 universidades federais tiveram uma queda significativa, prejudicando laboratórios, pesquisadores e infraestrutura de pesquisa.  

Entre diversas pesquisas e projetos atingidos pelo aperto da liberação de recursos, está a maior estrutura científica do Brasil, o Sirius. Localizado em um edifício circular de 68 mil metros quadrados, em Campinas, o Sirius é um projeto de cerca de R$ 2 bilhões desenvolvido pelo Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (Cnpem). O equipamento usa aceleradores de partículas para produzir luz síncrotron. Essa luz permite pesquisas sobre a composição e a estrutura da matéria, com aplicações em praticamente todas as áreas do conhecimento.  

O Sirius usa uma tecnologia que poucos laboratórios semelhantes no mundo possuem, mas a fase 1 de sua implementação ainda não foi concluída. Pelo projeto, 14 das chamadas linhas de luz, onde os experimentos são feitos, devem estar em operação nessa primeira fase. “Dessas 14 linhas de luz, nós estamos com seis recebendo experimentos e uma sétima em breve deve começar a ter experimentos”, disse ao Valor o diretor-geral do Cnpem, José Roque da Silva.   

Mas as restrições na execução orçamentária do governo federal deste ano congelaram, segundo Silva, R$ 182 milhões e obrigam um ajuste na gestão.  

“Efetivamente não vou colocar mais nada, estou parando, entre aspas, qualquer nova encomenda do Sirius neste momento”, disse o executivo. “Isso significa que nós vamos atrasar mais uma vez todas essas linhas de luz e cada vez mais o Sirius demora para atingir o seu máximo.” Silva repete uma avaliação que é comum na comunidade científica. “Ciência tem prazos longos e ela sofre porque hoje há um problema imediato que é resolver uma questão fiscal.”  

Na visão de cientistas ouvidos pela reportagem, os bloqueios têm ainda um efeito indireto: pioram um quadro já bem conhecido, o êxodo de cientistas brasileiros para outros países com condições melhores de trabalho.  

O Valor pediu à assessoria do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação uma avaliação dos impactos para a ciência provados pelos bloqueios no FNDCT. O ministério não respondeu.  

Presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Helena Nader disse ao Valor que espera que a MP seja devolvida ao Executivo ou, se votada, que seja derrubada. “Caso contrário, será, na prática, o fim da ciência, uma vez que o FNDCT é atualmente o único recurso de financiamento para a ciência brasileira”, afirmou.  

“Os cortes do fundo impactam diretamente na continuidade de pesquisas”, diz Carol Góis Leandro, coordenadora do colégio de pró-reitores de Pesquisa, pós-graduação e Inovação da Associação Nacional de Dirigentes de Instituições de Ensino Superior (Andifes). Ela diz esperar uma rediscussão do projeto do Orçamento de forma que ciência e tecnologia sejam tão atingidas.  

“Eu não só espero que a MP caduque ou seja revisada - porque é necessário que uma das duas coisas aconteça - bem como espero a revisão de várias outras políticas que afetam educação, ciência e tecnologia que precisam ser alteradas e modernizadas”, complementa o físico e professor da UFPE Anderson Gomes.   

O corte do FNDCT é visto não apenas como um golpe à ciência, mas como uma armadilha para a indústria, agricultura, mineração, transporte, entre outros setores da economia, que dependem de muita pesquisa científica para avançarem em inovação e tecnologia. Logo depois da publicação da MP, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) classificou como “incoerência” os cortes em um “fundo que é crucial para promover o desenvolvimento tecnológico”.  

Na semana passada, durante audiência pública no Senado que discutiu os impactos da medida, entidades que representam a ciência no país, entre elas Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC), reiteraram preocupações em relação à MP e seus impactos para a produção científica.

Fonte: Valor (04/11/2022)

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