Haja controvérsia sobre como fica na separação as reservas individuais de planos de entidades abertas e fechadas
Inúmeras são as controvérsias que geram o ajuizamento de ações judiciais em face de entidades abertas de previdência complementar (EAPC) e entidades fechadas de previdência complementar (EFPC). E essa judicialização merece um olhar atento: de um lado, é necessário acolher os avanços experimentados até o momento e conhecer as controvérsias que atualmente movimentam o Poder Judiciário; de outro, é preciso um esforço dos operadores do direito que atuam neste segmento para antever debates que ainda serão instaurados.
Em regra, esses debates são bastante complexos, já que os seus desdobramentos são impactados não apenas por discussões propriamente jurídicas, mas também pelas mudanças sociais, demográficas e econômicas experimentadas na sociedade.
Dentre os temas sensíveis que tangenciam as EAPC e as EFPC, está a possibilidade de partilha dos valores depositados em plano de previdência complementar, em razão de dissolução de matrimônio ou de falecimento do participante.
Em especial para o segmento de previdência complementar fechada, esse debate ganha especial importância quando colocamos em perspectiva o atual cenário do sistema: maior proximidade entre entidades abertas e fechadas, como se observa da Resolução CNPC nº 50, de 16 de fevereiro de 2022, além da contínua ampliação da cobertura previsional e, por consequência, do incremento de reservas alocadas em fundos de pensão e entidades abertas.
A Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência Complementar (Abrapp) divulgou recentemente que o patrimônio total do sistema de previdência complementar fechada alcançou R$ 1,18 trilhão em 2022, o que representa um crescimento de 6% em relação ao ano anterior. Os dados divulgados pela Abrapp mostram, ainda, que o sistema tem atualmente 2,6 milhões de participantes ativos, 793 mil aposentados e pensionistas e 3,7 milhões de dependentes, somando aproximadamente 7,1 milhões de pessoas.
Nos parece importante, portanto, acompanhar cuidadosamente os precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) acerca da partilha de valores depositados em previdência fechada durante a vida conjugal, em especial os fundamentos jurídicos e premissas fáticas que norteiam as decisões, sobretudo em razão do crescente número de planos na modalidade de contribuição definida (nos quais há um saldo em conta em valores monetários facilmente indentificável).
Atualmente, prevalece o entendimento de que planos administrados por EAPC possuem natureza multifacetária, isto é, natureza de investimento no período de diferimento (assim compreendido como o período anterior ao pagamento de prestações periódicas) e natureza previdenciária após o início da percepção do benefício.
Por sua vez, no caso de planos administrados por EFPC, o entendimento se inclina ao reconhecimento da natureza previdencial e personalíssima, pois os recursos vertidos ao longo de uma vida seguiriam a lógica de poupança para fins previdenciários inerente aos fundos de pensão.
Nesse sentido, o entendimento adotado no julgamento do Recurso Especial 2004210/SP (2018/0337070-7), divulgado no informativo jurisprudencial 760 do STJ, no qual foi debatido “se valores depositados em plano de previdência privada aberta – no caso, o VGBL – devem, em alguma medida, compor ou não o acervo hereditário.”
Vale dizer, o debate contou com a contribuição, na qualidade de amicus curiae, do Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP), Superintendência de Seguros Privados (Susep), Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Complementar e Capitalização (CNseg), Federação Nacional das Empresas de Seguros Privados, de Capitalização e de Previdência Complementar Aberta (Fenaseg), Federação Nacional de Previdência Privada e Vida (FenaPrevi), Instituto Brasileiro de Atuária (IBA), Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil) e Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC).
A 4ª Turma do STJ destacou que o VGBL (Vida Gerador de Benefício Livre) e o PGBL (Plano Gerador de Benefício Livre), modalidades oferecidas pelas EAPC, são planos por sobrevivência (de seguro de pessoas e de previdência complementar aberta, respectivamente) que, após um período de acumulação de recursos, proporcionam aos investidores uma renda mensal, que poderá ou não ser vitalícia, ou um pagamento único. Nestes casos, a contratação é facultada a qualquer pessoa física ou jurídica e há ampla liberdade e flexibilidade em relação aos valores de contribuição, depósitos adicionais e resgates antecipados.
A decisão indica que na previdência privada aberta quaisquer valores podem ser investidos “de acordo com a conveniência do investidor (e não apenas um percentual definido em regulamento sobre o salário de contribuição, como ocorre na previdência fechada), e resgatados livremente após cumprida a carência contratual”. No sentir dos julgadores, VGBL e o PGBL não apresentariam os mesmos entraves de natureza financeira e atuarial que são verificados nos planos de previdência fechada e, portanto, a eles não se aplicam os óbices à partilha por ocasião da dissolução do vínculo conjugal ou da sucessão.
Assim, planos de previdência aberta têm natureza multifacetária, isto é, natureza de investimento no período de diferimento (acumulação de recursos) e natureza de previdência complementar no momento em que o investidor passa a receber, em data futura e em prestações periódicas, os valores que acumulou ao longo da vida, como forma de complementação aos valores recebidos pela previdência pública e com o propósito de manter determinado padrão de vida.
No caso concreto, o entendimento pela natureza de investimento ficou evidenciado não apenas porque a morte antecedeu a percepção dos valores aportados na previdência complementar, mas também em razão da idade avançada do “de cujus” quando da contratação do VGBL, o que demonstraria a baixa a probabilidade de conversão dos valores em renda e pensionamento.
O entendimento veiculado no informativo jurisprudencial 760 segue o mesmo racional do entendimento que prevaleceu na 3ª Turma do STJ no julgamento do Recurso Especial 1.726.577/SP[1] (2018/0043522-8).
No âmbito do sistema de previdência complementar, a possibilidade de partilha dos valores depositados em plano administrado por EFPC em razão de dissolução de matrimônio gerou um importante debate no âmbito da 4ª Turma, especificamente no julgamento do Recurso Especial 1.545.217[2]/PR.
No caso concreto, o recorrido (vencedor) já estava em gozo do benefício complementar quando da separação e o resgate de valores decorreu de retirada do patrocínio, o que impôs o recebimento, de uma só vez, dos valores debatidos na ação.
O ministro relator, Luis Felipe Salomão, e o ministro Antonio Carlos Ferreira entenderam que não teria relevância para a solução da controvérsia a circunstância de a previdência privada ser mantida em entidade fechada ou aberta. Na visão destes ministros, a questão central residiria no fato de os valores terem ou não sido resgatados. Assim, enquanto não levantados, os valores conservariam a natureza personalíssima, sendo portanto, incomunicáveis e, uma vez resgatados, mesmo em momento posterior à extinção da vida conjugal, passariam a integrar o patrimônio comum dos ex-cônjuges a ser partilhado.
Contudo, prevaleceu a divergência instaurada pela ministra Maria Isabel Gallotti, acompanhada pelo ministro Marco Buzzi, que esclareceu no voto-desempate que planos de previdência, sejam estes de EAPC ou EFPC, sempre constituiriam planos de sobrevivência, com o intuito de gerar renda previdenciária.
Contudo, no âmbito da previdência complementar fechada “o tratamento legal é peculiar dado que as entidades fechadas atuam de forma complementar à Previdência Social, sujeitas ao controle e fiscalização da Superintendência Nacional de Previdência Complementar – PREVIC e do Conselho de Gestão da Previdência Complementar – CGPC, sendo constituídas sob a forma de fundação ou sociedade civil (LC 109/2001, art. 31, § 1º), sem intuito de obter lucro, tendo por objeto exclusivamente a administração de planos de benefícios de natureza previdenciária em prol de empregados e servidores públicos de determinada empresa ou ente estatal ou associação, para os quais tenham autorização do órgão regulador (LC 109/2001, art. 32)”.
A lógica precípua da previdência fechada, ou seja, “a de constituir um acervo financeiro a ser utilizado apenas no momento da aposentadoria dos participantes”, seria, portanto, oposta à lógica de investimento/aplicação financeira, própria das EAPC.
A tese de que os valores resgatados de plano de benefícios administrado por entidade fechada não integrariam o patrimônio comum dos cônjuges casados sob os regimes da comunhão universal ou parcial de bens, portanto, prevaleceu com uma margem apertada no julgamento. Isso indica que o tema demanda uma reflexão e amadurecimento, pois não é possível afirmar pela existência de uma jurisprudência mansa e pacífica.
Todos os elementos analisados certamente contribuirão para um incremento do debate a respeito da partilha de bens no âmbito judicial. O acompanhamento das discussões no âmbito do STJ é fundamental para todos aqueles que atuam no segmento da previdência complementar fechada, pois é possível que estejamos diante do início de um debate que ganhará proporções maiores no futuro, em razão da mencionada tendência de ampliação da cobertura previsional da previdência complementar e de uma maior proximidade entre entidades abertas e fechadas, com o incremento de planos na modalidade de contribuição definida.
[1] REsp n. 1.726.577/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 14/9/2021, DJe de 1/10/2021.
[2] REsp n. 1.545.217/PR, relator Ministro Luis Felipe Salomão, relatora para acórdão Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 7/12/2021, DJe de 9/2/2022
Fonte: Jornal Floripa (01/07/2023)
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