Para o geriatra Alexandre Kalache, o País está em ‘negacionismo total’ em relação ao seu envelhecimento
Quando está em frente a uma plateia, o geriatra brasileiro Alexandre Kalache, de 78 anos, faz questão de se apresentar como um “velho”.
“Sou velho. Olha bem pra mim. Careca, de barba branca, preciso de óculos, as rugas aqui mostram os sabores e dissabores que tive pela vida. Tenho orgulho de ter podido envelhecer, é a melhor coisa que pode te acontecer. Envelhecer é bom, morrer cedo que não presta”, diz Kalache, que é PhD pela University of Oxford, onde foi professor associado e pesquisador sênior, e um pioneiros dos estudos do envelhecimento no mundo.
Ativista desde a juventude, quando a luta era contra a ditadura, agora ele trava uma batalha para que o mundo entenda que está envelhecendo. E, em países como o Brasil, isso ocorre a passos largos – mais largos do que ele mesmo previu, quando chegou em Londres para o mestrado, em 1975.
“Os países desenvolvidos primeiro enriqueceram para, depois, envelhecerem. E nós vamos envelhecer em um país com muitos problemas sociais e pobreza. Vamos ser pioneiros. Seremos o laboratório de como envelhecer em um país que ainda não deu certo. Cinquenta anos depois, estamos aqui vendo aquilo que nem eu julgava que seria tão rápido. Essa foi minha única surpresa”, conta ele, que também é ex-diretor do Departamento de Envelhecimento e Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS) e atual presidente do Centro Internacional de Longevidade Brasil.
As Projeções de População do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, de 2000 para 2023, a proporção de pessoas com 60 anos ou mais quase duplicou no País — passou de 8,7% para 15,6%. O total de idosos subiu de 15,2 milhões para 33 milhões. Em 2070, a estimativa é de que cerca de 37,8% da população do País seja composta por idosos.
Para Kalache, embora as projeções sejam claras, o Brasil está em “negacionismo total” de seu envelhecimento, o que se reflete em políticas públicas despreparadas para o que ele chama de “revolução da longevidade”.
É por esse motivo que ele faz questão de “envelhecer na sala de frente”. Para que os demais percebam que esse é o nosso futuro comum. Nesse sentido, ele parafraseia Angela Davis, a consagrada intelectual norte-americana: “Não basta você não ser idadista, você tem que ser anti-idadista.”
“Lembre-se de uma coisa fundamental: o idadismo vai te pegar. É só esperar e sobreviver. Ele atinge a todos. Dos preconceitos, talvez esse seja o mais democrático”, avisa o geriatra, que será um dos palestrantes do Summit Saúde e Bem-Estar do Estadão, que ocorre hoje e amanhã, 14, em São Paulo.
Confira a entrevista:
Por que envelhecemos ainda mais rápido do que você tinha imaginado?
Eu tinha muito claro de que ia acontecer, mas foi mais rápido, sobretudo pelas taxas de fecundidade que caíram de forma tão acentuada. Ninguém esperava isso. Inclusive, o meu professor de demografia afirmou taxativamente que a minha previsão sobre a queda da fecundidade era absurda. Eu tentava argumentar que, com as mulheres entrando no mercado de trabalho, elas não teriam mais o interesse de ter tantos filhos como suas avós, bisavós ou até mesmo suas mães. Além disso, havia uma coisa chamada pílula anticoncepcional, que facilitava muito o controle da fecundidade.
Lembro-me do dia em que ouvi falar sobre a pílula pela primeira vez. Parecia ficção científica – como é que você pode tomar uma pílula e, simplesmente, não engravidar? Já existia a camisinha, mas era muito repudiada pelos homens e falha, pois o material não era resistente o suficiente. A tecnologia para o controle da fecundidade começou a acelerar. Já era revolucionária com o advento da pílula.
Isso explica porque, entre 1975 e o ano 2000, em apenas uma geração, a taxa de fecundidade caiu de 5,8 para 2,1. Desde 1998, ou seja, há 25 anos, estamos abaixo do nível de reposição populacional. É uma mudança muito rápida, que eu chamo de “revolução da longevidade”.
Pode falar da sua passagem pela OMS?
Fiquei 13 anos em Genebra. Foram anos maravilhosos. Aprendi muito pelo mundo afora, mas também fui, pouco a pouco, influenciando uma mudança de perspectiva. Em vez de se falar mal do envelhecimento, temos que celebrá-lo. Ao longo da história da humanidade, todas as civilizações buscavam a fonte da eterna juventude. No entanto, não existe juventude eterna e nunca vai existir. O fato é que, nos últimos cem anos, ganhamos um presente que nossos antepassados, nem mesmo nossos avós, poderiam imaginar: a possibilidade de envelhecer como regra, e não como exceção.
Em 1900, a expectativa de vida mais alta do mundo era na Alemanha, com 46 anos. Hoje, não há nenhum país no mundo com expectativa de vida tão baixa quanto a mais alta de cem anos atrás. Esse foi o fenômeno social que mais impactou a maneira como vivemos. Mas também representa um grande desafio, sobretudo para países como o Brasil, que estão envelhecendo de forma muito mais rápida, dentro de uma estrutura familiar muito diferente.
Estamos em uma encruzilhada: o que fazer para que o envelhecimento seja uma conquista a ser celebrada? Precisamos desenvolver políticas públicas adequadas, começando pela saúde, que é o pilar central do marco político do envelhecimento ativo. Em consulta com vários centros acadêmicos ao redor do mundo, a OMS lançou esse marco em 2002. Preferi chamá-lo de “envelhecimento ativo” em vez de “saudável”, porque acredito que você pode ter uma doença – hipertensão, diabetes, problemas osteomusculares, ou até mesmo depressão – mas, se essas condições estiverem controladas, você ainda pode continuar ativo na sociedade e contribuir com ela.
O primeiro pilar do envelhecimento ativo é a saúde. Ninguém quer envelhecer doente. Mas, em um país com tantas desigualdades sociais e fome, como alguém pode envelhecer bem se passou a infância, adolescência e idade adulta com fome? Como envelhecer bem sem acesso à água potável ou ao saneamento básico? O Brasil é um País onde existem 220 milhões de smartphones, mas muitas pessoas ainda têm os pés no esgoto.
O Brasil é um País onde existem 220 milhões de smartphones, mas muitas pessoas ainda têm os pés no esgoto - Alexandre Kalache, presidente do Centro Internacional de Longevidade Brasil
A saúde é criada no contexto do dia a dia, onde você mora, se locomove e trabalha. Isso gera saúde. Quando algo está errado, é necessário que profissionais de saúde estejam disponíveis para tratar as pessoas.
No entanto, as condições em que os futuros médicos estão aprendendo hoje são muito diferentes das realidades do envelhecimento. Atualmente, apenas 10% das escolas médicas têm a disciplina de geriatria. Independentemente da especialidade que escolham, todos precisam aprender mais sobre o envelhecimento, pois tudo muda à medida que envelhecemos. Estamos formando médicos para o século XX, não para o século XXI. A Sociedade Brasileira de Geriatria aponta que o déficit de geriatras é de 28 mil profissionais.
Estamos formando médicos para o século XX, não para o século XXI - Alexandre Kalache, presidente do Centro Internacional de Longevidade Brasil
O segundo pilar é o conhecimento, que envolve a aprendizagem ao longo da vida. É necessário aprender constantemente, da infância até à velhice, para que possamos nos tornar velhos viáveis e capazes de ser um recurso para nossas famílias.
O terceiro pilar é o direito de participar da sociedade. Não é um favor que a sociedade concede. Sempre digo: “saia do aposento”. A aposentadoria é uma palavra perversa, pois remete àquelas casas antigas do passado, onde se colocavam os velhos. Eu envelhecerei na sala da frente, ciente dos meus direitos e lutando por eles, sendo o ativista que sempre fui.
Na velhice, você é mais do que aquilo que sempre foi, e deve procurar se aperfeiçoar, continuar aprendendo e evoluindo.
Sempre digo: ‘saia do aposento’. A aposentadoria é uma palavra perversa, pois remete àquelas casas antigas do passado, onde se colocavam os velhos. Eu envelhecerei na sala da frente, ciente dos meus direitos e lutando por eles - Alexandre Kalache, presidente do Centro Internacional de Longevidade Brasil
O senhor alerta para o envelhecimento populacional há décadas. Acha que nossas políticas públicas estão adaptadas para responder à transição demográfica?
Estamos muito atrasados e presos a uma negação do envelhecimento. O Brasil é um país hedonista, que valoriza a beleza eterna da juventude, como se fosse possível. No Brasil, o velho é sempre o outro. No Brasil, o maior elogio que se pode fazer é dizer que alguém não aparenta a idade que tem. Por que não podemos aparentar a idade que temos? Tem que cair a ficha. Porque, caso não caia, os políticos, por exemplo, não vão desenvolver políticas para essa área. Eles vão continuar achando que não são parte do grupo de idosos. Se não houver introspecção, se as pessoas não pensarem que estão no mesmo barco e precisam ser mais solidárias, não aprenderemos a cuidar uns dos outros.
Isso passa pelo idadismo. É sempre um preconceito de um grupo que, em geral, tem poder e que se acha valendo mais do que o outro. “Eu sou jovem, você é velho”. Esse grupo tem essa atitude, que é, na verdade, uma ideologia. Depois do “i”, de ideologia, vem o “i” de institucionalizar aquela ideologia. A pessoa no poder não vai promover alguém porque é mulher, não vai dar um emprego porque é negro, não vai contratar uma pessoa com deficiência porque já julgou que não será produtiva, não vai dar uma ultrassonografia ou fazer uma ressonância porque a pessoa é velha. Vimos isso na pandemia. O Brasil, com 3% da população mundial, foi responsável por 11% das mortes, porque quem morria era velho. E, na cabeça daqueles que mandavam, essas pessoas estavam atrapalhando. Deixaram morrer e seguiram em frente.
Aí vem o terceiro “i”, que é interpessoal. Isso acaba contaminando as relações do dia a dia. Você dá o silêncio para aquela pessoa, não a ouve, não a valoriza. Pensa que ela não tem nada a acrescentar. Isso complica, porque, aos poucos, a pessoa vai perdendo sua autoconfiança, sua autoestima. E tudo isso converge para o último “i”, que é a internalização. Você acaba convencido de que realmente não vale. Em um País tão desigual, há ainda o quinto “i” da inequidade. Isso complica mais ainda.
Nossas políticas são muito falhas. Se você pegar as plataformas dos partidos políticos para as eleições municipais, quantos realmente manifestaram uma política clara, uma plataforma real para um país que está envelhecendo tão rapidamente? Estamos em negação. Negacionismo total.
Nossas políticas são muito falhas (em considerar o envelhecimento). Estamos em negação. Negacionismo total - Alexandre Kalache, presidente do Centro Internacional de Longevidade Brasil
O senhor fala do cuidado. Onde cuidar dessa população envelhecida? Estamos pensando nisso? Já temos protocolos?
Estamos apenas começando. Temos uma rede que foi criada por causa da pandemia, a Frente Nacional de Fortalecimento das ILPIs. Se fôssemos esperar do governo, seria uma catástrofe total. A Karla Giacomin (geriatra e vice-presidente do ILC Brasil) percebeu o que estava acontecendo na Espanha, na França e na Itália, onde o vírus estava entrando e matando a população mais vulnerável, especialmente a institucionalizada. Ela percebeu que, quando chegasse ao Brasil, seria um horror. Daí, foram desenvolvidas muitas diretrizes. A sociedade civil fez o papel que o governo se negou ou não tinha competência para realizar.
Temos apenas 1% da população de idosos no Brasil que mora em ILPIs, o que já está longe do número absoluto ou proporcional de países como a Holanda. Isso acontece em parte por estigma, pois as famílias ainda são muito criticadas se colocam uma pessoa idosa em uma ILPI. Muitas vezes, a melhor solução é essa. De que adianta ficar em casa abandonado, sem nenhum cuidado e nenhum estímulo?
Precisamos de mais dessas instituições, mas também de centros-dias (onde uma pessoa possa passar o dia e receber cuidado especializado), para que o cuidador possa recarregar as baterias e se sentir humano de novo. É fogo criar uma criança pequena, a falta de sono crônica é massacrante. Mas você sabe que isso vai mudar, que vai passar. Porém, quando você está lidando com uma pessoa com demência em casa, a situação só tende a piorar.
Há esperança? Acha que as pessoas estão se dando conta?
Procuro ser otimista e acredito que hoje se fala mais sobre longevidade do que nunca, e isso é positivo.
Fonte: Estadão (13/10/2024)
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