quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Planos de Saúde: Uso de psicodélicos para tratar depressão chega ao plano de saúde corporativo

 


Health tech de saúde mental que tem a família Bueno como investidora, Cíngulo oferece tratamento com quetamina, anestésico de efeitos psicodélicos que tem sido cada vez mais usado no tratamento de distúrbios mentais

A retomada de pesquisas psiquiátricas com psicodélicos, após décadas de um banimento que começou com a guerra às drogas do governo americano nos anos 70, começa a quebrar tabus. Em meio a uma epidemia de burnout e o aumento de casos de depressão e suicídio no ambiente de trabalho, esse tipo de terapia está aos poucos sendo incluída em planos de saúde corporativos — inclusive no Brasil.

A terapia assistida com quetamina, um anestésico desenvolvido há 60 anos e que na última década passou a ser usado para quadros de depressão refratária devido a seus efeitos de “expansão de consciência”, é um dos tratamentos incluídos no plano de saúde mental para empresas do Cíngulo — healthtech que tem entre os investidores o DNA Capital, fundo de venture capital da família Bueno, do grupo Dasa.

Novidade por aqui, o uso “off label” da quetamina para tratar depressão é uma febre nos EUA e no Canadá, onde há redes de clínicas especializadas no tratamento, como Ketamine Health Centers, Mindbloom, MindPeace e Field Trip Health — esta última estreou na Nasdaq e na Bolsa de Toronto no ano passado.

Por aqui, o tratamento é caro e ainda restrito a poucas clínicas psiquiátricas, que administram injeções ou receitam uma variação da substância, a escetamina, uma formulação intranasal patenteada pela farmacêutica Janssen sob o nome comercial Spravato — e que custa cerca de R$ 2,9 mil a caixa com um frasco de 0,2mL.

O Cíngulo populariza a quetamina ao dispensar a injeção ou a formulação com o inalador. O medicamento é oferecido na formulação líquida comum, vendida para clínicas e hospitais — um frasco custa cerca de R$ 70 — mas a prescrição é via sublingual, procedimento cujos protocolos foram apresentados originalmente pelo próprio fundador do Cíngulo, o psiquiatra e neurocientista Diogo Lara, em um trabalho publicado em 2013 no International Journal of Neuropsychopharmacology, assinado em conjunto com os pesquisadores Luisa Bisol e Luciano Munari.

O paciente recebe o medicamento pelo correio e faz o tratamento assistido por teleconsulta. — Esse é um tratamento revolucionário, mas que costuma sair por uns R$ 4 mil. Conseguimos baixar para uma fração disso — diz Lara.

A terapia assistida com quetamina é um dos tratamentos oferecidos no plano corporativo do Cíngulo e é recomendado apenas para casos mais graves. O app, que está disponível para baixar nas lojas do Android e da Apple, permite fazer o mapeamento do quadro de saúde mental do paciente e oferece sessões de terapia guiada personalizadas.

Nesta entrevista, o CEO do Cíngulo fala sobre a popularização de psicodélicos no tratamento de depressão e a responsabilidade das empresas em relação à saúde mental dos colaboradores.

Vivemos uma epidemia de burnout que se acentuou na pandemia. No mês passado, um estagiário se atirou da janela de um escritório de advocacia. Por que as empresas precisam ou deveriam se preocupar com a saúde mental dos seus colaboradores?

Saúde mental é produtividade. As empresas contratam as pessoas pelas suas capacidades mentais, pelo seu conhecimento. Mas os problemas mentais impactam a performance, as pessoas cometem mais erros. Esse é o efeito de 80% dos problemas de saúde mental. Só 20% dos casos levam ao afastamento. Mas o que a empresa enxerga é o afastamento, a falta, mesmo que seja transitório. Essa é a parte do iceberg que as empresas enxergam. Eu posso estar mal, desanimado, desatento e com menos concentração, mas vou na empresa, faço os calls, mal ou bem eu vou entregando. Só que eu estou entregando em torno de 20% a 30% menos do que poderia se estivesse sendo cuidado. Infelizmente poucas empresas enxergam isso e só se preocupam em oferecer quando o problema ficou grave. Você só vai atrás do encanador depois que estourou o cano. Ninguém está vendo a goteira. Perde-se muito mais água na goteira do que no encanamento estourado.

O que está na alçada da empresa?

Importante a empresa conseguir cuidar da segurança psicológica, para as pessoas se sentirem seguras de que elas podem ser elas mesmas. De que possam expressar quando sentem que estão trabalhando demais sem que achem que elas são preguiçosas. As pessoas precisam poder lidar de maneira madura com essas questões sem acharem que estão sendo insuficientes ou que vão sofrer uma retaliação. Entende-se que a empresa tenha que ter metas de crescimento e tal, mas também tem que ser dentro de um razoável, não é? E ter amparo quando a coisa pega. Seja o amparo do líder, da equipe de saúde do RH, enfim. São elementos que ajudam a evitar o burnout.

Como vê o aumento dos casos de burnout?

Uma causa clara de burnout é quando a pessoa está trabalhando onde não estão os seus talentos. Isso acontece, com alguma frequência, com pessoas que passam em concurso. Ela faz o concurso buscando a segurança financeira, mas quando começa descobre que o trabalho não tem nada a ver com ela, ela não se encaixa.

Nesse caso é uma questão da pessoa, não tem a ver com o ambiente corporativo.

Tem toda a parte individual da pessoa que chegou em determinada posição e questões que ela traz de antes. Nosso presente é um acúmulo do passado: pode ser uma adversidade na infância, questões de saúde. As pessoas têm as suas sensibilidades particulares. A ansiedade e a sensibilidade emocional são traços que predispõem o colaborador a ficar mais suscetível às adversidades do trabalho. Por exemplo: um chefe fala mais forte e a pessoa desmorona. Mas tem outras quatro pessoas que não desmoronaram. O chefe foi realmente tão grosseiro assim ou a minha reação foi desproporcional? Claro que se o mesmo chefe estiver dando problema pra todo mundo é porque o chefe está precisando de cuidado. Precisa receber um apoio e uma instrução para lidar com essa questão.

Difícil traçar uma linha do que é causado pelo ambiente de trabalho.

A empresa pode não ser a causa do problema, mas ela sofre o impacto. E mesmo que não seja um problema psíquico. A pessoa pode passar por uma tragédia pessoal — um acidente, uma doença grave do filho, a mãe é diagnosticada com Alzheimer, uma traição no casamento. Você tem uma série de estressores crônicos fora do trabalho. Se a empresa se der conta de que é bom para ela apoiar aquele colaborador, como recompensa essa pessoa não só vai melhorar a sua produtividade como vai se sentir grata. Isso aumenta a conexão.

Recentemente, viralizou nas redes vídeos de pessoas defendendo o quiet quitting, que é se preocupar menos com o trabalho e se dedicar o mínimo necessário.

Eu acho que a gente precisa dividir o que são as carreiras dentro das empresas. Existem pessoas que estão interessadas em crescer na empresa. E tem pessoas que não querem crescer e não está errado: “eu quero me manter onde eu estou. Estou satisfeito, ganho meu dinheiro e está tudo bem.” Essa pessoa é boa pra empresa. Muitas vezes o RH acha que todo mundo quer ser promovido. Na verdade, é uma minoria. E tem momentos da vida em que você quer e em outros em que não. Você pode estar com filho pequeno e não querer mais responsabilidade naquele momento. E está tudo bem. Muitas pessoas estão ajustadas no seu trabalho. É um equilíbrio conquistado. É bom pra todo mundo. A estabilidade é adequada para grande parte dos colaboradores. Só uma pequena fração tem essa ambição de estar sempre subindo. O trabalho não precisa ser uma coisa frenética no sentido que eu sempre tenho que dar o meu melhor.

O uso de substâncias psicodélicas para tratar depressão tem sido cada vez mais estudado. Qual a vantagem da quetamina e porque ela saiu na frente dos demais, como mescalina, psilocibina e outros?

A quetamina é a única que está disponível comercialmente, ainda que de forma regulada, restrita para clínicas e hospitais. A quetamina é hoje a maior revolução farmacológica para tratamento de depressão. E desde o início dos anos 2000, é de longe a mais estudada. Além disso, o tempo de ação da quetamina também favorece, porque se dá em torno de uma hora, enquanto que os efeitos da psilocibina (cogumelo), por exemplo, costumam levar 4 horas – e a reação pode ser mais imprevisível. Então acaba sendo mais prático. E você realmente consegue resolver quadros de depressão graves. E com o protocolo sublingual que criamos em 2013, que estamos oferecendo pelo Cíngulo e que vem sendo difundido nos EUA, o paciente não precisa nem sair de casa para receber o tratamento. Ele recebe pelo correio a medicação e conduzimos o processo todo por teleconsulta.

E como é o tratamento da terapia assistida por quetamina?

A quetamina provoca uma expansão de consciência onde a pessoa pode revisitar algumas questões pessoais. Além disso, ela realmente fortalece o cérebro, criando novos neurônios e fazendo com que os neurônios existentes fiquem mais fortes e conectados. Nós aproveitamos o momento em que a pessoa está sob o efeito da quetamina para fazer o trabalho psicológico. A quetamina provoca o chamado efeito egolítico, em que o ego fica meio dissolvido, e você tem mais acesso à consciência, que é onde acontece o trabalho psicoterápico, que pode ser presencialmente ou por teleconsulta. Essa metodologia sublingual barateia e simplifica muito o acesso. Muita gente poderia estar usando, mas não conhece.

E qual a perspectiva para o uso dos demais psicodélicos para tratamento de quadros de depressão?

O MDMA, que é o princípio do ecstasy, é o primeiro que provavelmente vai ser aprovado pelo FDA (Food and Drugs Administration) para transtorno de estresse pós-traumático. Mas o interessante é que quem deu entrada no processo de aprovação não foi uma farmacêutica porque ninguém detém patente do MDMA. Foi uma entidade sem fins lucrativos. O que deve acontecer, e que já está pipocando, vai ser um boom de clínicas para administração de MDMA, para fazer terapia assistida. Logo logo isso será uma realidade. Vai começar com transtorno de estresse pós-traumático. Mas há também estudos mostrando a eficácia para ansiedade social em autismo e na terapia de casal. Uma vez que seja aprovado para uma indicação, você acaba usando off-label para outros transtornos também. Mas como não tem uma empresa com interesse comercial por trás desse processo de aprovação no FDA, não sei como vai chegar na Anvisa. Há muitos estudos que apontam melhoras em casos de ansiedade e depressão e também com pacientes de câncer terminal com a psilocibina. A Ayahuasca, muito usada e estudada no Brasil, também tem mostrado resultados promissores para depressão.

Fonte: O Globo (19/09/2022)

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