Divisão da gigante de tecnologia, idealizada pelo cofundador Larry Page, buscou erguer um protótipo de smart city em parceria com a cidade canadense de Toronto
Era 2018 quando o Google (GOGL) anunciou detalhes sobre os planos para construir uma cidade inteligente em Toronto, no Canadá. Seria a Quayside, ou Cais em português.
O objetivo era criar um bairro que conseguiria abrigar instalações recreativas, de habitação, escritórios, comércio e espaço público, tudo isso com o uso da tecnologia.
Detalhes divulgados à época mostravam um arranjo modular que possibilitaria que telhas de concreto conduzissem calor para derreter gelo e neve, por exemplo.
Mas a teoria não deu certo na prática. Apenas dois anos mais tarde, em maio de 2020, o Sidewalk Labs, braço do Google para projetos de urbanismo e infraestrutura, pausou o projeto, citando a pressão econômica causada pela recém-iniciada pandemia da covid-19 como o principal motivo.
Até então, 3,9 bilhões de dólares canadenses (cerca de US$ 2,9 bilhões ao câmbio de hoje) haviam sido gastos. Neste ano, o sonho da cidade inteligente do Google e do Canadá chegou ao fim.
Para Josh O’Kane, autor do livro “Sideways: The City Google Couldn’t Buy”, a Quayside não deu certo em razão de uma série de fatores, sendo que a diferença cultural foi um dos pivôs para que a parceria entre o Google e a agência governalmental Waterfront Toronto não funcionasse.
“A Waterfront estava acostumada a trabalhar em um ritmo muito, muito devagar. Compare esse estilo com o Sidewalk, que estava sob pressão para justificar seu investimento da Alphabet, controladora do Google, para construir algo que mudasse o mundo”, disse O’Kane à Bloomberg Línea.
O’Kane disse que o mercado das smart cities está em uma encruzilhada. “O projeto Sidewalk Toronto foi uma lição sobre como construir — ou como não construir — uma cidade do futuro.”
Confira abaixo a entrevista, editada para fins de clareza:
Como nasceu o projeto da cidade inteligente do Google com Toronto?
O Sidewalk Labs foi idealizado pelo cofundador do Google Larry Page, obcecado em encontrar novas maneiras de sua empresa ser inovadora, e por Dan Doctoroff, ex-vice-prefeito de Nova York que acreditava que as cidades poderiam ser mais eficientes e acolhedoras se fossem estimuladas com força suficiente.
Depois de passarem alguns anos desenvolvendo grandes ideias para as cidades - desde a construção de edifícios sustentáveis e modulares até a colocação de uma cúpula no topo de um bairro -, eles decidiram concorrer a um projeto muito menor de 12 acres (cerca de 50 mil metros quadrados) no centro de Toronto.
A agência governamental Waterfront Toronto queria mostrar inovação e ideias sustentáveis de forma semelhante. No papel, era uma parceria ideal: eles trabalhariam juntos e construiriam uma comunidade da qual as gerações futuras poderiam se orgulhar.
O Sidewalk imaginou um bairro repleto de torres de madeira com eficiência energética; ladrilhos aquecidos; robôs de movimentação de carga subterrânea; espaços de trabalho flexíveis; e talvez até, algum dia, táxis robóticos. Mas, na realidade, aquele bairro nunca foi construído.
Por que deu errado?
Desde o início, houve um desalinhamento sobre a quantidade de terra que a Sidewalk Labs poderia obter. A Waterfront Toronto tinha energia apenas para 12 acres (cerca de 50 mil metros quadrados), mas sua equipe descreveu o projeto de maneira tão vaga para os licitantes que algumas pessoas na Sidewalk acreditavam que poderiam ter acesso a muito mais.
O que a Waterfront realmente queria era que a Sidewalk se provasse em 12 acres antes de concordar em ajudar a empresa a trabalhar com os governos para obter acesso a áreas maiores.
Mas o desalinhamento também era cultural: os poderosos executivos da Sidewalk foram criados no caldeirão da política de Nova York, em que planos agressivos são algo normal, enquanto a Waterfront era uma agência de desenvolvimento canadense - quase um estereótipo - dócil com uma história relativamente chata. A agência estava acostumada a trabalhar em um ritmo muito, muito devagar.
Compare esse estilo com o Sidewalk, que estava sob pressão para justificar seu investimento da Alphabet, holding controladora do Google, para construir algo que mudasse o mundo. E, idealmente, fazê-lo de maneiras que não se alinhavam com o funcionamento da Waterfront.
O Sidewalk Labs tinha o dever com os acionistas da Alphabet. A Waterfront tinha o dever de ser cuidadosa em nome dos contribuintes da cidade de Toronto. Combinados com suas histórias de origem e estilos de trabalho muito diferentes, eles nem sempre concordavam.
Por que o Google não conseguiu chegar a um acordo com a Waterfront, então?
Quando o Sidewalk Labs deixou Toronto em maio de 2020, a empresa culpou a incerteza causada pela pandemia no mercado imobiliário. Isso acabou sendo verdade, mas também foi uma simplificação exagerada.
Após uma série de controvérsias sobre quanta terra o Sidewalk poderia obter e como os dados poderiam ser gerenciados, a Waterfront Toronto passou grande parte de 2019 alertando e negociando com o Sidewalk para trabalhar com os termos apresentados.
Por seis meses depois de novo entendimento, a equipe do Sidewalk teve que se esforçar para fazer suas ideias funcionarem naquele espaço — o único terreno que já tinham garantido.
O Sidewalk tentou pedir à Waterfront diferentes estruturas financeiras para fazer a construção funcionar, mas, quando a pandemia chegou, e ninguém sabia se o setor imobiliário entraria em colapso, não fazia mais sentido o investimento. Pelo menos não do ponto de vista financeiro.
A missão era grande demais para o Google na época?
A missão estava muito alinhada com a forma como Larry Page imaginou o Google e a Alphabet. Page queria continuar inovando em novas partes da sociedade. Mas a compreensão de Page sobre inovação foi amplamente moldada pelo “Velho Oeste” dos primórdios da internet, e as cidades tornaram-se muito mais complexas desde então. Há muita consulta e processo envolvidos nas decisões do que acontece nas cidades. O Google fez seu nome inventando novos processos completamente.
O Sidewalk Labs não existe mais. Quais são os players nesse mercado agora? E o Google não pode voltar com o projeto?
O Sidewalk Labs era uma empresa muito menor na época em que se juntou ao Google e estava mais focado em tecnologias individuais, não em bairros e cidades inteiras. Além disso, se você perguntar a um número suficiente de pessoas próximas ao projeto, alguns admitirão que foi um grande constrangimento.
O mercado da cidade inteligente agora parece estar em uma encruzilhada.
Cidades como Barcelona há muito adotam uma abordagem “de baixo para cima” com tecnologia urbana, buscando desenvolver projetos lançados por seus próprios cidadãos. Depois, há cidades inteligentes de cima para baixo, em que uma pessoa ou um governo poderoso por trás estão gerando os mesmos tipos de preocupações que o projeto Sidewalk Toronto gerou, como o Neom na Arábia Saudita.
O que podemos aprender com o fracasso da Sidewalk?
O projeto Sidewalk Toronto foi uma lição sobre como construir - ou como não construir - uma cidade do futuro. As principais preocupações das pessoas, especialmente quem toma decisões sobre quais tecnologias são implementadas e como os dados são gerados e usados, serão questões sérias feitas por cidades em todos os lugares em breve. Quem deve ter voz nessas decisões?
O setor privado deveria ter uma palavra a dizer, mesmo que tenha motivos muito diferentes das pessoas comuns por estar em dívida com os acionistas?
Você acredita que as cidades inteligentes serão possíveis no futuro?
Se uma cidade inteligente é uma cidade com tecnologia incorporada e projetada para um futuro melhor, o que devemos considerar? Toronto é uma cidade com quase 3 milhões de pessoas e, no entanto, tem apenas uma linha de metrô nas direções leste-oeste passando pelo centro da cidade.
Os metrôs são uma tecnologia, e tornar o transporte rápido o melhor disponível para as pessoas que vivem e trabalham na cidade melhoraria a vida diária dessas pessoas e também reduziria a dependência de carros.
Isso também tornaria a cidade mais sustentável do ponto de vista ambiental. E mais pessoas poderiam usar esses trens se construíssemos mais densamente em torno de estações de transporte público, o que também é uma abordagem mais sustentável para a construção de cidades.
Portanto talvez a melhor questão não seja sobre a viabilidade das cidades inteligentes. Talvez seja melhor perguntar: como devemos investir nas cidades para melhorar a vida das pessoas?
Fonte: Bloomberg (26/12/2022)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
"Este blog não se responsabiliza pelos comentários emitidos pelos leitores, mesmo anônimos, e DESTACAMOS que os IPs de origem dos possíveis comentários OFENSIVOS ficam disponíveis nos servidores do Google/ Blogger para eventuais demandas judiciais ou policiais".