Robôs não trazem o aconchego de um abraço, mas são ferramentas que aproximam as pessoas, ainda que virtualmente
Nunca antes na história da humanidade uma pandemia foi enfrentada com tanta tecnologia. Diversos memes têm circulado pela internet retratando um diálogo no futuro entre um jovem de hoje e uma criança. Ao relatar o que fez para sobreviver à pandemia do COVID-19, dirá o idoso do futuro: “eu só fiquei em casa compartilhando memes, figurinhas e vendo Netflix”. Mas para além da salvação individual, é preciso considerar o papel desempenhado pela Inteligência Artificial nessa crise: prevenção e combate ao vírus e à solidão.
Se em grandes pandemias do passado, como na peste bubônica, a tecnologia mais avançada estava nos utensílios; hoje, em muitos casos, ela é, assim como o próprio vírus, invisível, recorrendo a dados pessoais para funcionar e salvar vidas. E o Direito não pode ser alheio aos efeitos colaterais desse progresso tecnológico.
Ao redor do mundo, diversos algoritmos comandados por Inteligência Artificial vêm sendo utilizados para mapear o avanço do vírus. A plataforma canadense Blue-Dot, por exemplo, utilizou um algoritmo desse tipo para alertar seus usuários sobre uma possível contaminação na região de Wuhan antes mesmo da notificação ao público feita pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O algoritmo, que se valia de técnicas de machine learning (aprendizado de máquina)1, combinava dados de notícias sobre a doença e bancos de dados sobre passagens aéreas para prever quais seriam as próximas cidades infectadas pelo vírus. Foi assim que ele conseguiu antever corretamente o avanço do vírus para Bangkok, Seul, Taipei e Tóquio nos primeiros dias.2
Para além da prevenção e do mapeamento, esses algoritmos também podem ser utilizados para facilitar a detecção e o diagnóstico de pessoas infectadas, gerando resultados que passam a ser empregados pelas agências de saúde para direcionar profissionais para o combate efetivo da doença. Até mesmo no Brasil já se tem notícias de uma atuação nesse sentido.
Isso só é possível porque esses algoritmos se valem de bases gigantescas de dados (o chamado big data), que os alimentam e subsidiam análises preditivas. Como se costuma dizer, se os algoritmos são o motor, por certo os dados são o combustível.4 E o tratamento desses dados, desde a sua coleta até a sua eliminação, não pode fugir do controle do Direito.
Este quadro se reveste de importância ainda maior quando se considera que os dados analisados são extremamente sensíveis5, na forma do art. 5º, inciso II da Lei nº. 13.7019/2018, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que, embora ainda não tenha entrado em vigor, já é um norte interpretativo fundamental. A tutela desses dados deve ser, por isso mesmo, ainda mais intensa, porque estes dizem respeito aos aspectos mais íntimos da pessoa humana.
Combatendo o vírus
Veja-se alguns exemplos ao redor do mundo. Nos Estados Unidos, o Tampa General Hospital da Flórida está instalando um sistema algorítmico capaz de instantaneamente identificar febre em visitantes, graças a um software de reconhecimento fácil. Em Israel, o Sheba Medical Center está monitorando pacientes infectados pelo vírus com um sensor de Inteligência Artificial que foi posicionado embaixo dos colchões dos leitos. O sistema analisa continuamente padrões nesses pacientes, tais como atividade cardíaca, respiratória e movimentos corporais, alertando a equipe médica quando algum paciente parece estar caminhando para uma falência respiratória ou sepse.
Ainda em Israel, está sendo desenvolvido um projeto conjunto do Ministério da Saúde com os professores Yuval Dor da Hebrew University of Jerusalem, além de Eran Segal e Benjamin Giger do Weizmann Institute of Science of Rehovot. Nesse projeto, distribuem-se questionários a serem preenchidos pelo público geral, cujos dados são posteriormente analisados por algoritmos de Inteligência Artificial. O objetivo principal é prever onde há maior probabilidade de o vírus se disseminar para que, em seguida, as autoridades possam focar nesta área para monitorar o aparecimento dos sintomas dos vírus com maior proximidade. Um projeto piloto foi lançado na semana do dia 15 de março e cerca de 60 mil pessoas responderam ao questionário. Após uma análise preliminar, os cientistas e pesquisadores conseguiram detectar um aumento nos sintomas nas regiões onde identificaram a presença de pacientes contaminados. Em suma, entendem que em virtude desse programa, as autoridades serão capazes de prever as próximas regiões com maior possibilidade de eclosão do vírus, o que irá permitir que os esforços sejam direcionados para essas áreas mais necessitadas.
Já se tem observado no Brasil uma série de questionários que tem circulado por aplicativos de mensagens como o WhatsApp, e que realizam diversas perguntas sobre o estado clínico da pessoa e possíveis sintomas para se tentar dar um parecer quanto à necessidade de procurar atendimento médico e hospitalar. É preciso, no entanto, reforçar o cuidado com o tratamento desses dados, observando, ainda, se estes são necessários para as finalidades para as quais foram coletados (art. 6º, inciso III da LGPD). Isso porque muito embora esses dados possam estar sendo coletados para finalidades lícitas e ajudem no mapeamento da doença, há que se considerar que eles podem acabar sendo armazenados e utilizados para finalidades espúrias mais tarde. Daí a necessidade de fornecer tão somente dados imprescindíveis para as necessidades da pesquisa, tanto ao poder público, como aos planos de saúde privados, já que ambos devem atuar, igualmente, na proteção dos dados pessoais coletados.
No âmbito da União Europeia, por exemplo, o Comitê Europeu para a Proteção de Dados (The European Data Protection Board – EDPB) divulgou uma declaração por meio da qual alerta que, apesar de o mundo estar vivendo uma situação de emergência, o tratamento dos coletados neste período deve respeitar os princípios gerais da proteção de dados e não deve ser irreversível. Afirma, assim, que a utilização de dados sensíveis, como aqueles relativos à saúde e à localização das pessoas pode ser excepcionalmente permitida de maneira mais ampla, desde que constitua uma medida proporcional, necessária e apropriada, dentro de uma sociedade democrática.
Detalha, em seguida, como deverá ser o tratamento de dados pessoais de localização coletados em celulares e daqueles coletados por empregadores. Diante da possibilidade de se utilizar esses dados de geolocalização, a declaração dispõe que as autoridades públicas deveriam primeiramente tentar processá-los de maneira anônima. Mas, quando não for possível, os Estados poderiam introduzir medidas para salvaguardar a segurança pública. Para tanto, deverão munir os indivíduos de um direito a um remédio judicial. A linha geral, desse modo, deve ser a adoção de medidas proporcionalmente menos invasivas.
Por fim, estabelece que os empregadores só deverão requerer informações específicas a seus empregados relativamente ao coronavírus ou realizar check-ups médicos neles se houver obrigação legal neste sentido. A declaração analisa ainda a possibilidade de os empregadores revelarem a colegas de trabalhos e terceiros que um empregado está infectado com COVID-19. Neste sentido, a orientação é de que os empregadores devem informar seu staff sobre casos confirmados e tomar medidas protetivas, mas não devem comunicar mais informações que o necessário. Naqueles casos em que seja necessário revelar o nome do empregado infectado e que a legislação nacional o permita, os empregados deverão ser informados previamente e sua dignidade e integridade deverão ser protegidas.
Como se pode notar, a Inteligência Artificial e o Big Data estão ajudando a revolucionar o combate e a prevenção de grandes surtos, não apenas do coronavírus. As lições aprendidas nesta pandemia terão, inquestionavelmente, efeitos duradouros. A ideia é que quanto mais cedo e mais detalhadas forem as informações, mais facilmente as autoridades poderão saber onde fazer testes para identificar possíveis infectados e saberão onde os recursos devem ser alocados. Importa ainda considerar que grande parte dos dados (em boa parte anonimizados) utilizados para alimentar esses sistemas e algoritmos são oriundos de gigantes da Internet, como o Google, Amazon, Twitter, Instagram e Facebook. Estas duas últimas têm compartilhado postagens mencionando o coronavírus em grupos, assim como dados sobre a movimentação dos usuários.
Um remédio para a solidão
A Inteligência Artificial também pode ser utilizada como um remédio, ainda que parcial, para a solidão em tempos de distanciamento social, sobretudo para os mais idosos, cujas restrições são bem mais severas. Já há algum tempo tem-se falado nos chamados “robôs cuidadores”12, que auxiliam no monitoramento constante e servem de companhia para pessoas idosas. Alguns, com recursos avançados de Inteligência Artificial, já são capazes de manter longas conversações, suavizando os efeitos mais perversos da solidão. Eles também podem auxiliar em tarefas domésticas mais simples e, como se tem visto, até convidar os idosos para exercícios físicos leves. Mais uma vez aqui é preciso considerar que estes dispositivos captam dados ambientais para interagir com seus usuários, daí porque deve ser ressaltada a importância da proteção dos dados dessas pessoas em vulnerabilidade que acabam sendo expostas.
Além dos robôs cuidadores, outras “espécies” podem ser empregadas para entreter pessoas de quaisquer idades. Veja-se, por exemplo, o caso dos “robôs sexuais” ou sexbots13, que em razão da Inteligência Artificial que os comanda, são capazes de aprender e se adequar às preferências de seus “parceiros” de carne e osso, despertando questionamentos muito mais amplos que aqueles relativos à proteção dos dados pessoais de seus usuários. Lista-se apenas alguns: (i) seria possível se comercializar robôs sexuais infantis? Se não for possível, as regras proibitivas teriam a mesma ratio das normas que combatem a pornografia infantil?; (ii) pode-se estuprar ou violar um robô sexual? (é possível estuprar uma máquina?); (iii) deve haver alguma regulamentação sobre a produção e comercialização desses robôs? Dúvidas não há de que essas perguntas possuem grande componente ético, que não pode ser desprezado no debate.
Alude-se, ainda, aos chamados “robôs entregadores”, como o Digit da Ford14, que associados a veículos autônomos podem trafegar pelas cidades, realizando entregas e evitando o contato e o contágio entre as pessoas, como tem feito a Telemedicina, que foi regulamentada excepcional e temporariamente pelo Ministério da Saúde por meio da Portaria nº 467 de 20 de Março de 2020.15 Embora essa tecnologia que combina robôs a veículos ainda seja restrita a alguns poucos lugares do mundo, vislumbra-se uma utilização em larga escala num futuro próximo.
Como se pode notar, a Inteligência Artificial já faz parte do combate ao coronavírus e de futuras pandemias que possam surgir. Pensando melhor, talvez essas pandemias nem voltem a eclodir nos próximos anos, graças a análises preditivas cada vez mais precisas feitas pela tecnologia, que será capaz de impedir ou conter rapidamente a sua disseminação. A Inteligência Artificial de hoje é usada para desenvolver vacinas, medicamentos, realizar diagnósticos mais acurados com base em extensas análises de dados. Além disso, cada vez mais dispositivos serão implantados nos corpos para diagnosticar doenças em tempo real. Nada obstante, é preciso tomar cuidado para que os dados coletados para o funcionamento da Inteligência Artificial não seja utilizado para finalidades deletérias.
Por certo, os robôs não trazem o aconchego de um abraço nem o acalanto de um carinho, mas, pelo menos, são ferramentas que aproximam as pessoas, ainda que virtualmente, enquanto o isolamento social nos deixa em quarentena, reféns das sugestões de filmes e séries que a Inteligência Artificial da Netflix nos sugeriu e das playlists que o Spotify gerou para nosso passeio diário do quarto para a cozinha. Depois desse texto, é provável que me sugira ficção científica.
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