quarta-feira, 1 de abril de 2020
TIC: Mundo será mais digital depois da crise, diz Lambranho, presidente do conselho da GP
Para o presidente do conselho da GP, celular traz capacidade de decidir com base em dados
O homem, como o conhecemos deixou de existir, diz Fersen Lambranho, presidente do conselho da GP Investments, que desde sua fundação, em 1993, já captou US$ 5 bilhões e investiu em mais de 50 empresas. A afirmação pode soar como uma profecia catastrófica frente ao surto de covid-19, mas é uma nota de esperança.
A digitalização da sociedade levou um volume de dados e uma capacidade de analisá-los nunca vistos antes para as mãos dos indivíduos, de forma barata e fácil. A “nova espécie” em gestação, afirma o empresário, é um misto do ser humano com o celular, que se tornou inseparável da maioria das pessoas. É por meio do smartphone, e das possibilidades oferecidas pela tecnologia, que mais gente tomará decisões melhores, baseadas em fatos e dados, não importa se em Londres ou na Tanzânia.
No Brasil, afirma Lambranho, é no ecossistema de tecnologia, que ele diz considerar excelente, que estão as respostas para sair do surto de forma mais rápida e segura. “Temos uma massa crítica de empresas, cientistas de dados e tecnologia capaz de resolver qualquer problema do coronavírus”, diz.
Nesta entrevista, ele fala dos impactos da pandemia, do modelo de financiamento da inovação no país e do papel fundamental da pesquisa acadêmica. Diz que a fuga de cérebros não é um problema exclusivamente brasileiro e que os grandes grupos estão entre os principais beneficiários do movimento do “venture capital” no apoio às startups. A sociedade pós-covid-19 será mais higiênica, solidária, digital e consciente de seus gastos, diz. “Sou um otimista. Acredito que o mundo sairá muito melhor dessa crise.”
Abaixo, os principais trechos da entrevista:
Valor: Com o coronavírus, mais empresas têm buscado o que se convencionou chamar de transformação digital. Mas esse é um termo amplo. O que significa?
Fersen Lambranho: Transformação digital pode ser sintetizada no seguinte: nunca foi tão barato e tão fácil ter acesso a um volume de processamento [computacional] e a dados para tomar decisões com base estatística. Portanto, decisões com método científico. Minha geração aprendeu ciência, mas quando começou a trabalhar precisou ser pragmática e trabalhar com pouca informação. Hoje, os jovens de 20 e poucos anos saem da escola com o método científico na cabeça e têm acesso a um nível de informação e de processamento altíssimo, a um custo muito baixo. Digitalizar é isso. É assumir nos processos e sistemas de negócio o método científico com base em fatos e dados. Essa é a grande transformação do mundo atual. Temos uma massa de cientistas e empresas capaz de resolver qualquer problema do coronavírus”
Valor: Que repercussão isso tem nas organizações e nos indivíduos?
Lambranho: O homem, como o conhecemos, deixou de existir. Hoje, 5 bilhões de pessoas têm celular [5,1 bilhões, ou 67% da população global, segundo dados da GSMA, associação mundial de operadoras]. No Brasil, há mais celulares que gente [o número foi superado em 2018, com 220 milhões de aparelhos e 210 milhões de habitantes à época, de acordo com pesquisa da FGV-SP]. O novo ser é uma mistura entre humano e celular. O smartphone coloca na mão de cada pessoa um poder de processamento muito alto. Nunca houve, antes, uma situação em que um jovem da Tanzânia estivesse tão próximo de outro jovem da mesma idade em Oxford, na Inglaterra. Por maior que seja a diferença socioeconômica, da Tanzânia é possível alguém fazer uma descoberta, uma invenção, uma inovação, como faz o rapaz de Oxford, porque ambos têm acesso aos mesmos dados e informações.
Valor: Muitos países estão impondo barreiras e fechando suas portas. Isso não pode afetar o compartilhamento da informação?
Lambranho: Vejo de forma diferente. Estamos assistindo à coisa mais fantástica na história do homem. Existem diferenças culturais enormes, mas neste momento temos o planeta inteiro se confinando em casa, deixando de se abraçar, de beijar, de segurar a mão. Questões culturais profundas estão sendo homogeneizadas repentinamente, num grande movimento global. Séculos e séculos de tradição estão sendo quebrados igualmente em todos os lugares. Acho que essa é a maior prova da globalização. Há uma guerra contra um vírus que é um inimigo comum e todos os cientistas do mundo estão colaborando entre si para chegar a algum lugar.
Valor: Mas e as restrições? Não há o risco de que retardem a globalização e despertem sentimentos xenófobos no futuro pós-coronavírus?
Lambranho: Hoje, quem gerencia os países é a minha geração. E a minha geração está preocupada com uma série de conceitos antigos, que podem levar a coisas como as mencionadas. Mas a nova geração é colaboracionista, trabalha em conjunto. Está mais preocupada em atingir uma missão, a resolver um problema, do que ganhar dinheiro. Estamos vendo líderes de muitos países e organizações internacionais tomarem decisões que são relevantes para o paradigma de que tem 50, 60 anos. Com certeza, é diferente do paradigma de quem está mudando o mundo com a tecnologia. O que se vê hoje, com os países estão se fechando, é muito mais uma reação administrativa do que qualquer outra coisa. Podem fazer o que quiserem, mas em 20 anos o mundo será muito mais global. A atitude é outra, de colaboração.
Valor: A covid-19 tem algum paralelo anterior? A II Guerra, talvez?
Lambranho: As pessoas que tomam decisões, hoje, não viveram a guerra. Ou muito poucos. Somos uma geração preparada para a paz. Mas os brasileiros, talvez, sejam um dos povos mais bem preparados para isso que está começando. Quando comecei a trabalhar, tivemos sete planos econômicos [Cruzado I e II, Bresser, Verão, Collor I e II, e Real, entre 1986 e 1994]. Todo ano a gente tinha de cortar orçamento, demitir, repensar a vida. Especialmente no Plano Collor, que congelou o dinheiro das pessoas no banco. É muito parecido com o que está acontecendo agora porque as pessoas podem até ter dinheiro, mas não vão comprar. Hoje é pior porque os meios de produção estão parando. Por outro lado, a tecnologia nos permite continuar existindo e, mais que isso, nos comunicando, colaborando, buscando saídas, mesmo trancados em casa. Temos um potencial intelectual que está em casa, mas produzindo. E diferentemente da época do Plano Collor, temos no Brasil um ecossistema de tecnologia no qual se investiu muito dinheiro e que está disponível para procurar soluções. Séculos e séculos de tradição estão sendo quebrados em todos os lugares. Essa é maior prova da globalização”
Valor: Qual o papel das companhias de tecnologia na crise?
Lambranho: O problema do vírus não vai acabar. Vai continuar. E teremos de conviver com isso. A solução está justamente nesse ecossistema de tecnologia brasileiro, que eu considero de excelente qualidade. Aquela startup que pertence a um setor em dificuldades, como hotéis, restaurantes ou viagens, esse pessoal pode estar sofrendo na receita primária, mas tem dentro de casa 30, 40 cientistas de dados. Eles podem virar as baterias para ajudar a criar soluções para o país. E isso, por sua vez, pode dar origem a um novo modelo de negócio ou, no mínimo, gerar capacidade para a empresa manter o time até passar a crise.
Valor: Havia falhas graves na engrenagem de financiamento das startups. O cenário melhorou?
Lambranho: Avançou muito. A Endeavor [organização sem fins lucrativos de apoio ao empreendedorismo] foi criada no Brasil na primeira onda de internet, no início dos anos 2000, pela constatação de que faltava um espírito empreendedor no país. E ajudou muito a desenvolver esse conceito. Depois, houve uma onda mais recente de “venture capital” que conseguiu levantar dinheiro. As pessoas começaram a perceber, como nós [na GP], a importância da tecnologia, com mais disposição de colocar dinheiro em risco. Agora você vê iniciativas como o Big Bets [de apoio à fase inicial de novos negócios], que dizem o seguinte: é preciso ajudar as pessoas que têm boas ideias, bons projetos, a construir empresas de boa qualidade. Não basta ser um inventor. Para ter sucesso, é preciso desenvolver o negócio. Estamos evoluindo rapidamente. O Brasil tem, hoje, uma massa crítica de empresas, cientistas de dados e tecnologia capaz de resolver qualquer problema do coronavírus. Temos de usar isso.
Valor: Qual o papel do Estado no incentivo à pesquisa?
Lambranho: O Brasil abriu mão do apoio à ciência há muito tempo. Isso não é desse governo, nem do anterior, nem do que veio antes. Quando eu estava na faculdade, já era um problema. Acho que o coronavírus vai demonstrar que coisas como saneamento e esgoto precisam ser resolvidas, que o apoio à ciência é estratégico para o país. Vai mostrar que a tecnologia da informação reduz muito o custo de apoiar a ciência e obter seus benefícios. E vai fazer com que a gente chegue mais perto, e mais depressa, ao entendimento de que o país precisa ter uma política de ciência e tecnologia para resolver seus problemas. Por uma simples razão: é a forma mais fácil, barata e simples de fazer as coisas.
Valor: Não há uma perigosa fuga de cérebros para o exterior?
Lambranho: Fuga de cérebros é um problema mundial. Há pelo menos um país no mundo que é especialista em capturar cérebros de terceiros, que são os Estados Unidos. Talvez esse seja o grande ativo dos americanos - suas universidades e sua capacidade de atrair chineses, brasileiros, indianos... Eles conseguiram estabelecer um sistema de captação de inteligência maior que o de qualquer país do mundo. Há países que são sugadores de talentos e países que são provedores. É um fenômeno global. Mas devemos considerar que nosso maior ativo são 230 milhões de pessoas. E que, com essa população, muito mais do que montar um time de 22 jogadores para disputar a Copa do Mundo a cada quatro anos, temos uma monstruosa capacidade instalada. Quando nasce uma criança, independentemente de ser na favela ou em uma casa rica, o potencial humano está ali. Desenvolver e ser capaz de reter [esses talentos] é uma habilidade que precisamos desenvolver, como outros países. E a tecnologia que está no celular, na mão de todo mundo, é a melhor ferramenta para fazer isso acontecer. De forma simples e barata. Precisamos lembrar que nosso maior ativo é o nosso povo.
Valor: À frente do conselho da GP, o sr. tem encontrado bons exemplos de empresas de tecnologia?
Lambranho: Temos visto muita coisa bacana, muito negócio inovador, muito empreendedor bom, e muita gente de tecnologia e ciência de dados querendo desenvolver soluções. “Venture capital”, como o nome já diz, é o uso do dinheiro para soluções novas. No século XIX, durante a revolução industrial, houve uma grande onda de dinheiro colocado em coisas que deram certo e em coisas que deram errado. A minoria dá certo e a maioria dá errado. Na minha opinião, as companhias estabelecidas, grandes, que têm marca, estão entre os maiores beneficiários do movimento de “venture capital”. Porque de cada 100 companhias novatas, uma será um unicórnio [startup com valor de mercado superior a US$ 1 bilhão], mas no trajeto desse dinheiro que foi investido, desse trabalho que foi feito, muito aprendizado é capturado por empresas como Pão de Açúcar, Vale, Petrobras. Essas companhias vão tirar proveito disso. Não vejo empresas centenárias desaparecendo, mas melhorando muito, aumentando a produtividade, ficando mais relevantes ao adotar conhecimento novo, práticas novas e hábitos novos.
Valor: O que falta à academia no Brasil para estimular a inovação?
Lambranho: O que você vê na Inglaterra, em Israel, nos Estados Unidos é que a pesquisa científica é fundamental. A academia tem de assumir que isso é vital para sua própria existência. Daí deriva todo o resto. Se você cria um esquema de pesquisa bem montado, voltado à solução de problemas, não faltará dinheiro para financiar. Em 1979, quando estava na faculdade de engenharia, eu ouvia debates na UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro]... Não queriam dinheiro da iniciativa privada ajudando pesquisas. Porque isso direcionaria o caminho da pesquisa, privatizaria a pesquisa. Tenho uma visão diferente. A iniciativa privada coloca dinheiro onde vê que pode vir a ter benefícios. E se não tem benefício, talvez não seja a pesquisa acadêmica adequada para aquele momento. Participei de ações em universidades federais nas quais há um centro de excelência que atrai recursos. Você tenta colocar dinheiro ali, mas por ser uma universidade, o dinheiro é espalhado pelo todo e quase não chega ao centro de excelência. Acho que o coronavírus pode ajudar a colocar tudo isso no devido lugar. Tenho certeza absoluta de que, nesse ecossistema de tecnologia do Brasil, a disposição dos empresários para colaborar com as universidades é imensa. Agora, temos de considerar o seguinte: hoje, qualquer um consegue colaborar com universidades em Israel, na Inglaterra. As universidades brasileiras precisam se preocupar em elevar seu nível, porque a tecnologia abre perspectivas fora do país.
Valor: O que vai mudar depois da pandemia. Que sociedade teremos?
Lambranho: Mais higiênica, mais solidária, mais digital, gastando menos ou gastando nas coisas certas. Sou muito otimista. Acredito que o mundo sairá muito melhor dessa crise. Mais tolerante. Será dolorido e vamos sair aos pouquinhos. Teremos de aprender a trabalhar em conjunto para criar soluções e conviver com o vírus daqui para frente, mas acho que o mundo será melhor.
Fonte: Valor (01/04/2020)
Postado por
Joseph Haim
às
14:19:00
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