quinta-feira, 22 de junho de 2023

Planos de Saúde: Na nova Lei de Planos de Saúde é preciso separar o joio do trigo



Conhecimento da sociedade sobre o desempenho assistencial dos prestadores é pedra angular do debate

A Lei 9.656, de junho de 1998, dispõe sobre os planos de saúde. Promulgada há quase três décadas, a legislação estabeleceu um marco civilizatório no setor e deu início ao fim da barbárie que habitava anteriormente, numa espécie de terra de ninguém do ponto de vista regulatório. Dois anos após esta data, criou-se a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que materializa a regulação de um setor que é recheado de assimetrias de informação e, portanto, requer, num sistema capitalista como o nosso, uma ação moduladora do Estado a fim de equilibrar as forças atuantes neste mercado, visando ao conhecimento mútuo entre os agentes que o compõe e a dar transparência ampla ao que todos devem saber.

De lá para cá, acertos e erros ocorreram, mas, sem dúvida, a regulação estatal amadureceu e se aperfeiçoou neste período, de modo que a ANS se consolidou como uma autarquia de respeito internacional em virtude de seu corpo técnico qualificado e compromissado com a sustentabilidade do setor. Mas isso, em que pese todo o esforço digno de nota, por parte da ação do Estado, não tem sido suficiente para assegurar o equilíbrio deste ecossistema. Tal fato, resta patente, se explicita na insatisfação de usuários com seus planos de saúde, dos planos de saúde com seus usuários, e de ambos, de modo geral, com a Agência.

É nesse panorama sintético apontado acima que ora se discute, no Parlamento Federal, uma revisão da Lei seminal que regulamenta a saúde suplementar no Brasil. O projeto de Lei 7419/06, de relatoria do Deputado Hidelis Duarte, segue na Câmara o rito legislativo pertinente, com audiências públicas, debatendo e ouvindo a sociedade, o setor, os estudiosos e os agentes estatais reguladores e, em breve, os brasileiros conhecerão o relatório que será colocado para a apreciação de Casa.

O debate que aparece na imprensa dá conta de propostas para coibir aumentos “abusivos”, assegurar ampla cobertura assistencial, ampliação da participação mais ativa no setor de outros profissionais da saúde como nutricionistas, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais, entre outros pontos que nos chegam pelas notícias. Mas numa rediscussão de normativa legal, bem-vinda, diga-se de passagem, pelo tempo em que ela foi criada, precisa-se enfrentar alguns pontos difíceis e impopulares, muitas vezes pouco conhecidos por grande parte da sociedade, mas cruciais para uma reforma que seja de fato reestruturante.

Em primeiro lugar, surge de pronto a já popular discussão sobre o alcance do rol de cobertura de procedimentos: taxativo versus exemplificativo. De modo esquemático, o primeiro limita a cobertura ao que está pactuado e já incorporado pela Agência reguladora do setor ao seu rol mínimo como obrigatório; acima deste mínimo, a operadora não é obrigada a ofertar, e se o faz, tem o direito de cobrar na mensalidade um “plus” a mais, com o perdão do pleonasmo. O segundo, ao contrário, grosso modo, defende que aquilo que é prescrito, se registrado na autoridade sanitária local, deve ser ofertado ao usuário, independente do que foi contratualizado. Há argumentos para os dois lados, mas é um tema que não está completamente pacificado e sua discussão é motivo de judicialização em cortes superiores de justiça.

Um ponto importante, também, mas quase não abordado francamente, é se o cálculo atuarial da carteira, do contrato, do usuário, em suma, é, por si, suficiente para definir o valor de eventuais reajustes, como se faz em seguros; ou não, há a necessidade de uma regulação estatal para definir estes percentuais. Trata-se de lei de mercado, de uma regra securitária, ou de assunto de Estado? E nesse bojo, subliminarmente, surge a questão da natureza real que se deseja das operadoras de saúde: queremos de fato, como sociedade, que elas sejam empresas mercantis, como diz a atual legislação, ou no fundo gostaríamos que elas fossem do chamado terceiro setor e, portanto, sem fins lucrativos?

Uma outra questão que merece ser enfrentada com franqueza é o real papel da ANS na regulação do setor. Se criou por lei uma autarquia para esta finalidade, se realizou concursos específicos para servidores capacitados em regulação da área, deu-se a Agência autonomia administrativo-financeira, nomeou-se o seu corpo diretivo após sabatina e votação no Senado Federal, com mandatos não coincidentes e estáveis, mas por diversas vezes suas posições e decisões técnicas são reformadas pelo Judiciário e, também, pelo Parlamento.

Ponto nevrálgico também é o papel dos prestadores de serviço em saúde, que atualmente, não são alcançáveis pela atual normativa da ANS. Sua relação com usuário pode se dar de modo direto, sem a necessidade de credenciamento prévio pela operadora e, posteriormente, o beneficiário buscar um ressarcimento nos moldes de reembolso? Ou está o usuário restrito a uma rede pré pactuada no contrato? Ainda neste tema, a remuneração dos procedimentos será tabelada, (alô CADE, pode isso?) ou se estabelece a livre negociação entre as partes a fim de buscar o ponto de acordo comum?

E, por fim, mas não menos importante, precisamos encarar um assunto latente, mas fundamental, que permeia muitos dos problemas anteriores, que é a transparência assistencial. Um mercado em que há assimetria de informações precisa de regulação. Até mesmo o mais adepto economista da Escola de Chicago não contesta isso. Discute-se o alcance desta intervenção estatal, mas não o mérito do papel benéfico da transparência máxima dos dados para o equilíbrio e o desenvolvimento do setor.

Portanto, ter a sociedade o conhecimento, democrático, sobre o desempenho assistencial dos prestadores é pedra angular deste debate. Para escolher de modo consciente um plano olha-se, claro, a rede credenciada oferecida. Mas o que se quer mesmo saber é sobre os indicadores de mortalidade pós cirurgia cardíaca daquele hospital; o índice de infecção pós-operatória dos cirurgiões daquele corpo clínico; o índice de exames falso negativos daquela clínica; a sobrevida pós um tratamento de um câncer naquele centro especializado etc. Só a partir disso é que saberemos o valor daquele serviço. E com isso poderemos comparar preços, reajustes, rede credenciada, rol de tratamentos ofertados. Em suma, poderemos separar o joio do trigo.

Fonte: Jota (20/06/2023)

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