Migalhas conversou com Raissa Soares, advogada de um dos casos em análise no STJ. Entenda o debate.
Pedro é um garoto de dez anos com diagnóstico de TEA - transtorno do espectro autista. Desde 2018, ele realiza tratamento multidisciplinar pela ciência ABA, por meio do qual tem conseguido bons resultados.
Mas o tratamento de Pedro está, agora, nas mãos da Justiça, e a depender da decisão, ele terá de interrompê-lo.
O nome que citamos é fictício, mas a história é verdadeira. O processo é um dos dois processos que estão em análise pela 2ª seção do STJ, a qual deverá decidir sobre a taxatividade, ou não, do "rol da ANS".
No caso concreto, o tratamento de Pedro foi negado pelo plano de saúde porque não consta na lista de cobertura obrigatória. Na Justiça, o garoto conseguiu decisões favoráveis em 1º e em 2º graus, e no STJ. Mas a operadora de saúde voltou a recorrer sob alegação de que há, na Corte da Cidadania, decisões divergentes sobre o mesmo tema.
A decisão pode ter graves consequências na vida do menino. Mas o debate representa, em verdade, uma questão muito mais ampla do que este caso concreto: estão na balança da Justiça tratamentos e exames para uma série de doenças gravíssimas, como o câncer.
A depender do que for julgado, pode-se estar fechando as portas da Justiça para milhares de pacientes desesperados por socorro médico. É essa a opinião da advogada Raissa Moreira Soares, que atua no caso de Pedro, já que a jurisprudência nortearia decisões de 1º e 2ª grau sobre o tema.
Ainda de acordo com a advogada, em uma análise jurídica, o processo nem deveria ser julgado pelo STJ, porque trata de questão de fato, e não de Direito. Segundo a causídica, as instâncias responsáveis pela análise de provas já o fizeram, decidindo pela imprescindibilidade do tratamento indicado pelo médico, e pela abusividade de cláusula contratual que limita a cobertura à lista da ANS.
Taxatividade do rol
De acordo com a ANS, agência reguladora de saúde nacional, a lista de procedimentos chamada Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde "garante e torna público o direito assistencial dos beneficiários dos planos de saúde, contemplando os procedimentos considerados indispensáveis ao diagnóstico, tratamento e acompanhamento de doenças e eventos em saúde". Tratamento para crianças autistas com base na ciência ABA não estão nessa lista e, em geral, não são contemplados na cobertura de planos de saúde.
Segundo explica a psiquiatra infantil Gabriela Pinheiro, ess técnica de psicoterapia é a que tem mais evidências científicas de melhoras no quadro de autismo. O tratamento demanda de 10 a 50 horas semanais, e pode ser aplicado por equipe multidisciplinar - fonoaudiologia, terapia ocupacional e outras, desde que tenham certificação.
No caso de Pedro, mesmo após a equipe médica que o acompanha ver no tratamento a única chance de melhora, houve negativa por parte da empresa de saúde. A situação é semelhante à de vários pacientes autistas e gera uma corrida à Justiça. As decisões, em geral, são favoráveis aos pacientes. A 3ª turma do STJ tem jurisprudência no sentido de que o rol de procedimentos elencados pela ANS é meramente exemplificativo, e não taxativo - quer dizer, não exclui a possibilidade de cobertura de tratamentos quando se verifique sua necessidade.
O debate que se levanta, agora, é um posicionamento divergente exarado pela 4ª turma da Corte. O caso foi julgado em dezembro de 2019 e é de relatoria do ministro Salomão (Resp 1.733.013).
Em razão deste precedente, a Unimed apresentou embargos de divergência, em dois processos que são agora julgados pela 2ª seção.
O julgamento teve início em setembro de 2021, quando o ministro Salomão votou pela taxatividade do rol. Em voto-vista, ministra Nancy Andrighi se manifestou em sentido diverso, contra a taxatividade.
Com 1 a 1 no placar, a análise foi suspensa por pedido de vista, e ainda não tem data para ser retomada.
Taxatividade
A advogada explica que, dizer, agora, que a lista da ANS é "taxativa" seria dar carta branca para os planos de saúde negarem qualquer procedimento, exame, tratamento ou medicamento que não esteja elencado, independentemente da indicação médica ou da gravidade do estado de saúde do paciente.
Quer dizer - se já há uma necessidade de se buscar a Justiça para a obtenção de cobertura de tratamentos em casos excepcionais, e se já é feita uma análise pormenorizadas nestes casos, por que trazer à tona um debate tão restritivo sobre o tema?
Votos
Em setembro de 2021, ministro Luis Felipe Salomão apresentou seu voto pela natureza taxativa da lista da ANS.
O relator, no entanto, ressalvou hipóteses excepcionais em que seria possível obrigar uma operadora a cobrir procedimentos não previstos expressamente pela ANS, como terapias que têm recomendação expressa do Conselho Federal de Medicina e possuem comprovada eficiência para tratamentos específicos. O ministro também considerou possível a adoção de exceções nos casos de medicamentos relacionados ao tratamento do câncer.
Em fevereiro de 2022, votou a ministra Nancy Andrighi, pela natureza exemplificativa do rol da ANS, "porque só dessa forma se concretiza a política de saúde idealizada pela Constituição".
De acordo com Nancy Andrighi, o rol de procedimentos da ANS constitui referência importante na organização do sistema de saúde privado, mas não pode restringir a cobertura assegurada na lei brasileira nem servir como imposição genérica quanto ao que deve ser coberto pelos planos - impedindo, em consequência, a definição individualizada do tratamento pelo médico e o aproveitamento, pelo beneficiário, de novas tecnologias na área de saúde.
A ministra também enfatizou a vulnerabilidade do consumidor em relação às operadoras dos planos e o caráter técnico-científico da linguagem utilizada pela ANS na elaboração do rol de procedimentos obrigatórios - condições que, para ela, impedem a pessoa de analisar com clareza, no momento da contratação do plano, todos os riscos a que está submetida e todas as opções de tratamento que terá à disposição, inclusive para doenças que ela nem sabe se terá.
Aditamento
Após o voto-vista da ministra em sentido divergente, o relator, Luis Felipe Salomão, fez um aditamento ao seu voto.
Ele anotou, primeiro, que a questão relacionada ao autismo não está abordada porquanto há julgamento em curso sobre o tema e questão de ordem no sentido de que tais tratamentos já foram incluídos no rol da ANS.
Com relação ao outro processo em análise, que trata de caso de paciente com depressão profunda e esquizofrenia, e referindo-se ao tema de modo geral, Salomão pontuou que a posição da 4ª turma "não é insensível às necessidades dos usuários de plano de saúde". Naquele colegiado, após posicionamento de que a lista da ANS não é exemplificativa, o ministro Marco Buzzi pontuou que a necessidade de cobertura de procedimentos ou medicamentos não previstos no rol da ANS deve ser observada caso a caso, podendo ser admitida de forma excepcional, quando demonstrada efetiva necessidade - não bastando, portanto, prescrição médica.
O ministro também destacou que "em nenhum país do mundo há lista aberta de procedimentos e eventos em saúde de cobertura obrigatória pelos planos privados ou públicos".
"O voto apresentado anteriormente aos eminentes pares deixa claro que há exceções, e justamente por isso se trouxe a julgamento dois casos distintos, em conjunto, onde se nega em um deles a cobertura porque o tratamento não tem nenhuma comprovação científica de eficácia (Eresp 1.889.704) e noutro (o caso ora em julgamento) onde a cobertura pelo Plano está sendo mantida, ainda que o tratamento não esteja previsto no rol da ANS."
No caso concreto, o ministro concluiu que, como o rol da ANS não contempla procedimentos devidamente regulamentados pelo Conselho Federal de Medicina, de eficácia comprovada, "forçoso o reconhecimento do estado de ilegalidade, para excepcional imposição de cobertura do procedimento".
Processos: EREsp 1.886.929 e EREsp 1.889.7
Fonte: Migalhas (16/03/2022)
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